Covid-19: Os riscos da hiperpsiquiatrização do fenómeno

O momento atual exige de todos, sobretudo dos profissionais de saúde e das pessoas ligadas à ciência, ponderação e sensatez. Para tal, é essencial não embarcar na emissão de opiniões ou em tomadas de posição sensacionalistas, com pouca base científica, cujo resultado não é mais do que a geração de pânico na população. Aí sim, pode residir um perigo substancial para a saúde mental de todos.

A pandemia da covid-19 tem, ao longo das últimas semanas, vindo a afetar marcadamente a vida de todos os portugueses, sendo que poucos serão aqueles que, no passado, tenham já vivenciado situações comparáveis à que se verifica no momento atual. Como resultado das alterações ao nível dos estilos de vida dos cidadãos, muito se tem discutido acerca do impacto real e potencial da pandemia na saúde mental dos mesmos.

Ao nível político, o Ministério da Saúde e a Direção-Geral da Saúde têm colocado nas suas agendas as questões ligadas à saúde mental, e prova disso foi, respetivamente, a criação de um microsite dedicado à covid-19 e a emissão de novas normas de orientação para os serviços. No domínio da ciência, os estudos atualmente em curso são unânimes ao apontar que, tanto na população em geral (sobretudo como consequência do isolamento social) como em alguns grupos profissionais específicos (como por exemplo os profissionais de saúde), a pandemia da covid​-19 tem tido um impacto negativo, entre outros, ao nível da ansiedade, do stress e dos sintomas depressivos. Contudo, a leitura destes resultados, ainda preliminares, carece de uma prudência à qual nem sempre se tem assistido, desde logo porque, tratando-se de achados resultantes de avaliações realizadas num momento único, não é possível estabelecer, com segurança, relações de causa-efeito entre a pandemia e os sintomas identificados.

Face a todos estes dados e acontecimentos, duas questões parecem colocar-se de imediato: (1) Será que as taxas de doença mental, em Portugal, aumentarão como consequência da pandemia? (2) E será que os cidadãos portugueses necessitam de intervenção urgente para reparar os danos que a pandemia está a causar na sua saúde mental?

Estas parecem tratar-se de questões importantes e que merecem ser discutidas de forma séria, entenda-se, sem qualquer tendência para a incursão no sensacionalismo. Desde logo, parece importante evitar a hiperpsiquiatrização do fenómeno, ou seja, a automática atribuição de um significado patológico à ansiedade, ao stress e/ou aos sintomas depressivos. A verdade é que os portugueses enfrentam hoje uma pandemia que, naturalmente, percecionam como negativa, sendo que, perante um estímulo percecionado como negativo, é normal e até mesmo expectável o aumento dos níveis de preocupação, de nervosismo, e/ou o surgimento de sentimentos de tristeza ou de angústia.

A normalização do fenómeno é fundamental para a saúde mental dos cidadãos e é nessa que, não raras vezes, tem vindo a ser colocado menos ênfase do que seria desejável. Assim, tal como em outras situações percecionadas como negativas na vida das pessoas, como são exemplos o divórcio, a perda de emprego ou a morte de um ente querido, também este é um momento excecional e, não esqueçamos, um momento de perda – a perda de alguns direitos fundamentais.

Face ao exposto, a resposta às questões colocadas parece clara: não sabemos ainda se as taxas de doença mental, em Portugal, aumentarão como consequência da pandemia e/ou se os portugueses necessitam de intervenção urgente, já que não se pode excluir a hipótese de, em muitos casos, a ansiedade, o stress e os sintomas depressivos regressarem aos seus níveis anteriores aquando do desaparecimento do estímulo negativo, leia-se, aquando da término da pandemia. Como tal, mais importante do que a massificação dos serviços de apoio de saúde mental parece ser a criação de serviços robustos, que ofereçam aos cidadãos a possibilidade de avaliação por parte de profissionais de saúde especializados.

O momento atual exige de todos, sobretudo dos profissionais de saúde e das pessoas ligadas à ciência, ponderação e sensatez. Para tal, é essencial não embarcar na emissão de opiniões ou em tomadas de posição sensacionalistas, com pouca base científica, cujo resultado não é mais do que a geração de pânico na população. Aí sim, pode residir um perigo substancial para a saúde mental de todos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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