Como convive a Teoria Económica com a covid-19?

A saída da actual crise, primeiro sanitária e depois económica, implica que sejamos práticos nas nossas soluções, mas simultaneamente exigentes e ambiciosos.

1. Se a covid-19 trouxe algum benefício, foi estar a gerar um turbilhão de ideias, com uma quantidade de artigos publicados, em Portugal e à volta do mundo, contendo reflexões e novas perspectivas. A este respeito, podemos comparar o impacto desta epidemia com o de uma enorme revolução ou de uma grande guerra. Entre os grupos mais activos na frente das novas ideias, encontram-se naturalmente os politólogos mas também os economistas.

Porém, como é bem perceptível, as opiniões dos próprios economistas apontam em direções muito diferentes. É conhecida a velha anedota: “numa sala com quatro economistas existem pelo menos cinco opiniões.” Aparentemente, o que estamos a ver em termos das propostas dos economistas neste momento não está muito longe do insinuado pela anedota. Tal circunstância poderia ser vista como penalizadora da “qualidade” ou da “relevância” da ciência económica. Mas não creio que assim seja.

2. Alguns dos conceitos básicos ensinados em qualquer curso de Economia são observáveis na realidade que estamos a viver.

Um dos conceitos mais queridos dos economistas é o de “custo de oportunidade”, que nos diz que por cada decisão económica tomada, prescindimos dos benefícios de todas as opções alternativas. Admitindo que existe um milhão de euros para combater a epidemia, esse valor pode ser afecto à compra de ventiladores, ou à aquisição de kits de diagnóstico, etc. Tendo-se optado pelos ventiladores, os benefícios não concretizados das alternativas são os “custos de oportunidade”.

É evidente que nem todas as opções são deste tipo “tudo ou nada”. Em geral é possível seguir mais que uma opção, embora afectando menos recursos a cada.

Isto leva-nos a uma outra noção querida dos economistas que é a de “trade-off”. Existe um trade-off sempre que há necessidade de conciliar objectivos económicos conflituantes. No limite, como vimos no exemplo anterior, opta-se por uma das decisões possíveis. Mas também se pode encontrar um compromisso entre elas. Uma parte do propósito da ciência económica é clarificar como é que as melhores decisões podem ser tomadas, encontrando um compromisso ou regulando interesses em conflito, de forma a obter-se o melhor resultado.

3. A actual pandemia confrontou-nos com alguns trade-offs extraordinários. O mais relevante, e ao qual a The Economist dedicou um editorial, respeita à intensidade das políticas públicas de combate à epidemia. Em alguns lugares (China, Hong Kong, Taiwan, Singapura, Japão, Coreia do Sul) foram tomadas medidas muito severas; noutros (incluindo EUA e Brasil, mas também, até certo ponto, Holanda, Suécia ou Reino Unido) optou-se por uma abordagem mais branda, com receio das medidas de “fecho” das sociedades gerarem custos económicos excessivos.

É aqui que entra a agora célebre “imunidade da manada”. Os governos que optaram pela abordagem “branda” apresentaram como fundamento a possibilidade de uma maior disseminação do vírus levar a uma maior imunidade colectiva, criando barreiras a ondas subsequentes.

Esta segunda opção tem os seus méritos, embora o acreditar nela envolva riscos de cálculo. Ela admite, conscientemente, um maior número de óbitos agora, em troca de benefícios materiais (menor fecho da economia) e humanos futuros (menos contaminados em ondas subsequentes).

Porém, essa opção é questionável a vários títulos. Uma pergunta pertinente neste ponto é de qual o valor de cada vida humana? Todos se recordam do grupo de crianças que ficaram presas numa gruta na Tailândia no Verão de 2018. O resgate envolveu equipas de vários países e uma enorme operação logística. Penso que ninguém fez o cálculo dos custos dessa operação, mas como imaginamos terá sido de largos milhões de euros. Este exemplo serve para introduzir a pergunta seguinte: qual o valor que cada país está disposto a investir para salvar possíveis vítimas da covid? O mesmo que foi gasto para salvar cada uma das crianças tailandesas? Mais? Menos?

É evidente que a resposta a estas perguntas depende de se tratar de um país mais ou menos rico. De qualquer forma, é provável que mesmo o país mais rico não possa investir, para salvar cada uma das vítimas da covid-19, o mesmo que em média foi gasto para salvar cada criança na Tailândia. Ainda assim, podemos dizer que em países onde o imperativo humano é mais forte, a disponibilidade para gastar mais por cada vida será maior, mesmo em detrimento da despesa e do prejuízo de um maior fechamento da economia.

Certamente que se pode argumentar que a imunidade da manada poderá salvar mais vidas no futuro. Mas o risco de optar por uma abordagem mais branda foi assumido na ignorância fundamental sobre taxas de contágio, velocidade de propagação ou letalidade da primeira onda. Basicamente, essa opção foi tomada como se tratasse de uma jogada de casino. Sendo que intuímos que quem seguiu essa via o terá também feito por cálculos eleitorais.

 4. Voltamos aqui à teoria económica. A sua auto-designação como Economics (com o “s” no fim) revelou uma pretensão de ser tão rigorosa como a Physics ou a Mathematics. Na melhor das hipóteses, porém, ela acabou por se constituir como uma espécie de engenharia social, produzindo um conjunto de receitas sobre como aperfeiçoar o mundo e sobre como fazer escolhas tendo em conta custos de oportunidade e trade-offs implícitos. Sendo que em contraste com os engenheiros, os economistas não têm uma crença comum acordada.

Basta ver o debate sobre mais ou menos Estado que tem sido intenso, antes e mais que nunca depois do eclodir da pandemia. Encontramos quase que uma fé religiosa em opiniões expressas por cada um dos lados. Não sou dos que acreditam que no meio é que está a virtude, mas tenho a dizer que encaro boa parte deste debate com algum agnosticismo. Também sobre o debate entre o retorno ao local em detrimento do global, devemos ser muito cautelosos; já tivemos o Portugal-dos-pequeninos e sabemos que não é por aí que queremos ir.

5. A saída da actual crise, primeiro sanitária e depois económica, implica que sejamos práticos nas nossas soluções, mas simultaneamente exigentes e ambiciosos.

Esta crise impõe colossais custos às sociedades, em vidas humanas e em perda de empregos e rendimentos, até porventura em termos de segurança pública, mas também oferece oportunidades. Valerá a pena referir um estudo de Marshall Burke da Universidade de Stanford, que estimou que o número de vidas salvas por diminuição da poluição durante as semanas do fecho económico na China terá sido pelo menos 20 vezes superior ao de óbitos do COVID-19. Isto recorda-nos que as soluções que vão ser testadas nas frentes da saúde, do emprego ou das finanças, não devem ser autonomizadas das políticas ambientais.

Para superamos as dificuldades actuais precisamos: de uma ciência económica mais prática, capaz de produzir soluções produtivas, em vez do endeusamento das técnicas ou da futilidade dos grandes argumentos ideológicos; de uma ciência económica não dogmática, mas simultaneamente sensata; de uma ciência económica que não se foque excessivamente no maior ou menor valor contábil de cada vida humana, mas que se preocupe com o bem-estar de cada indivíduo e da sociedade no seu todo. 

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