Entre a ciência e a economia

Perante o dilema da economia, a pressão para a colocar de novo a funcionar e a exigência de salvaguarda da saúde pública, é hora de decisões dramáticas e de consequências imprevisíveis se uma nova vaga epidemiológica vier a ocorrer, o que ninguém pode descartar neste momento.

A ideia de o universo ser infinito, da Terra girar em torno do sol trouxe dissabores aos homens de ciência que tiveram a ousadia de tornar públicas essas suas descobertas. A ciência, por vezes - muitas vezes - está um passo à frente, quando não léguas à frente daquilo que o cidadão comum conhece e receia. Ouvir os homens e mulheres da ciência é fundamental perante o desconhecido, e estamos numa daquelas alturas em que a palavra da ciência é fundamental para definir para onde vamos e, sobretudo, como podemos ir.

Recentemente, causou algum escândalo no Reino Unido a revelação no jornal The Guardian dando conta da presença de um político no grupo de sábios que aconselha o governo sobre a pandemia de coronavírus. Várias personalidades do mundo científico insurgiram-se, alguns exigiram mesmo que se tornassem públicas as minutas das conversas, por forma a se entender se houve ou não influência política, e se esse conselheiro especial do primeiro-ministro conseguiu, por exemplo, influenciar o atraso na decisão de confinamento em nome de interesses outros que não os da saúde pública. Porque a ciência não tem cor. Ou não devia ter.

Na Alemanha, Christian Drosten, o cientista que identificou o vírus da SARS em 2003, tornado “o” especialista número um do país, receia uma segunda vaga, mas admite que eles próprios ainda estão cheios de interrogações sobre o que se pode passar em seguida se não se mantiverem os preceitos necessários que a ciência recomenda. O vírus é ainda uma entidade que suscita alguma perplexidade, e há um debate entre os partidários de uma retoma rápida da economia e aqueles que, como Christian Drosten, se inquietam com o levantamento demasiado rápido das restrições.

“Pulmões, fígado, rins, coração, nervos… a covid-19, uma doença com múltiplos alvos” é o título de uma reportagem recente no Le Monde, e ela dá a dimensão do que temos ainda de desconhecido diante de nós. A covid-19 não cessa de surpreender.

Em França, o conselho científico que apoia o governo tornou públicas as suas decisões, sendo que nem todas elas foram atendidas pelo executivo. São quatro dezenas de páginas com indicações sobre o que tem de ser “concretizado antes de se iniciar o desconfinamento”, e o exemplo mais emblemático é o que diz respeito ao regresso às aulas.

Considera-se que na população estudantil os riscos de o vírus surgir sob a forma de doença são baixos, mas que o perigo de contágio é muito elevado, pelo que se recomenda que das escolas às universidades tudo se mantenha “encerrado até ao mês de Setembro.” O executivo decidiu de outra forma, e admite o regresso às aulas, embora com algumas modulações.

Quanto ao porte de máscara nos transportes públicos, bem como as medidas de distância social, considerados essenciais pelo conselho científico francês, que chega a admitir que a não verificação dessas normas “possa conduzir a uma retoma incontrolável da epidemia”, o executivo vê-se diante de um quebra-cabeças, pois dificilmente conseguirá criar condições como aquelas que são preconizadas pelos cientistas que os aconselham.

Mas se não cabe aos homens e mulheres da ciência indicar o percurso, porque é preciso pesar outros factores quando se trata de dirigir uma sociedade, desde a sustentabilidade da economia ao peso demográfico, dos desequilíbrios sociais às alterações climáticas, passando até por tensões regionais e internacionais - os vectores que contribuem para a tomada de decisão política são múltiplos - nesta altura de grandes riscos os dados da ciência são determinantes na tomada de decisões sobre o nosso destino colectivo. Macron disse-o claramente em meados de Março, quando referiu que o princípio que o guia para gerir esta crise “é a confiança na ciência. É escutar aquelas e aqueles que sabem.”

Perante o dilema da economia, a pressão para a colocar de novo a funcionar e a exigência de salvaguarda da saúde pública, é hora de decisões dramáticas e de consequências imprevisíveis se uma nova vaga epidemiológica vier a ocorrer, o que ninguém pode descartar neste momento.

Há gestos que cada um de nós pode ter individualmente, por respeito si e aos outros, mas é preciso que governos e empresas criem as condições mínimas para que seja possível ter um ambiente de confiança para se retomar o dia-a-dia. Esse é o grande desafio que têm agora, organizar o espaço público, organizar o trabalho. E não podem falhar.

Sugerir correcção