Outra Pandemia

Não, não tem nada a ver com a covid-19. Mas também é uma Pandemia (com “P” maiúsculo).

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O assédio não diminui em função da área de pele que se tem descoberta Manuel Roberto

Fechada em casa, a cumprir a quarentena, penso num assunto da atualidade, num problema da sociedade. E não, não tem nada a ver com a covid-19. Mas também é uma Pandemia (com “P” maiúsculo).

Penso no machismo, esse parasita que insiste em sobreviver. Também afeta milhões em todo o mundo, mas é desvalorizado pelos economistas e pelos políticos (com ‘p’ minúsculo).

Penso que hoje, por ter saído de casa para ir ao supermercado, por ter andado 20 minutos na rua, fui assediada — várias vezes. Enumero aquelas de que me lembro: dois homens que guiavam motas, buzinaram; dois amigos, que estavam à varanda, assobiaram e gritaram-me para subir; um homem num carro uivou piropos; outros dois condutores abrandaram e reduziram-me com o seu olhar; um grupinho de adolescentes, que estava à minha frente na rua, comentou propositadamente alto aquilo que julgava do meu corpo.

Vinte minutos na rua.

Repito: V – i – n – t – e –– m – i – n – u – t – o – s.

Dez para ir, dez para voltar.

Penso na impossibilidade de sair de casa despreocupada, por causa desta Pandemia que acabei de descrever. Penso na quantidade de vezes que me impedi de usar peças de roupa que adoro por não me apetecer passar por isto. Penso na quantidade de vezes que me senti mais segura por sair de casa tapada da cabeça aos pés — o que é uma ilusão: o assédio não diminui em função da área de pele que se tem descoberta. 

Penso na quantidade de vezes que tive de me defender, que tive de me chatear e responder a estas criaturas. Penso na quantidade de vezes que tive de confortar amigas desassossegadas porque um homem se achou no direito de as objetificar.

Penso no dia em que me apercebi que não conheço nenhuma mulher que nunca tenha sido assediada.

Penso no porquê desta Pandemia ser desvalorizada constantemente pelos “fato e gravata” que se julgam heróis por penalizarem o assédio. Como se isso fosse suficiente.

A sociedade está doente, sim. Mas já estava antes do surto de covid-19.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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