O 25 de Abril e a máscara do coronavírus

O incómodo suscitado pelas comemorações do 25 de Abril na AR tem também um motivo recalcado e um pretexto para o ressabiamento

O Presidente da República escolheu três adjectivos para qualificar o propósito dos que se opuseram à comemoração do 25 de Abril no Parlamento: “absurdo”, “incompreensível”, “vergonhoso”. A comemoração deveria ser natural, pacífica – até porque o Parlamento se manteve a funcionar em pequeno formato durante o estado de emergência – e, sobretudo, necessária como um gesto de normalidade democrática num país que enfrenta a sua maior crise desde a queda da ditadura. Que explica então a hostilidade que suscitou em diversos quadrantes, ultrapassando os círculos naturais da extrema-direita e envolvendo certa direita “civilizada”, como o CDS, ou mesmo personalidades avulsas mais à esquerda (a mais bizarra das quais será talvez João Soares).

Não há, obviamente, uma explicação única para motivações múltiplas, mas talvez exista um traço comum entre todas elas: a hipocrisia. Ou ainda a cegueira e a má-fé deliberadas. Dizer, por exemplo, que as comemorações parlamentares constituem uma afronta a todos os que foram coagidos ao confinamento e ao afastamento forçado dos seus próximos, pelo que a cerimónia deveria realizar-se em formato tipo videoconferência, é confundir deliberadamente aquilo que não pode nem deve ser confundido. Não só porque a Assembleia da República (AR) tem estado em funcionamento, mas fundamentalmente porque é aí, na casa da democracia, que mais faz sentido comemorar a principal data com significado cívico-político nacional no último século, aquela que assinala a transição de Portugal da longa ditadura do Estado Novo para a democracia.

Dizer que a grande maioria dos portugueses coagidos ao confinamento era contra essas comemorações constitui uma afirmação gratuita e sem quaisquer provas (tal como é avançada pelo troglodita André Ventura ou até o suave Telmo Correia). E se acaso se confirmasse, deveria levar-nos à trágica conclusão de que a consciência e a sensibilidade democrática dos portugueses foram já gravemente afectadas pela experiência do coronavírus. Ora, aquilo a que temos assistido, especialmente a forma pacífica e civilizada como a generalidade dos nossos concidadãos têm aceite os constrangimentos do estado de emergência, comprova exactamente o contrário. Não será decerto um estado eterno – até porque nada o é e não seria saudável que o fosse – mas é, pelo menos e para já, aquele que transparece do comportamento dos portugueses e é retratado nas sondagens.

Outra explicação avançada para as discordâncias com a cerimónia – e representadas, nomeadamente, pela explicação sibilina de Ramalho Eanes, afirmando discordar do seu “modelo” inicial – foi a do formato excessivo que Ferro Rodrigues terá começado por querer emprestar-lhe, desafiando as regras da DGS. Mesmo que assim tenha sido – mas não vi comprovado concludentemente em parte alguma –, a insistência nessas discordâncias depois de corrigidos os presumíveis excessos iniciais acaba por ser reveladora de má-fé justificativa de uma persistente hipocrisia (como tem sido a dos responsáveis do CDS).

Afinal, o incómodo suscitado pelas comemorações do 25 de Abril na AR tem também um motivo recalcado e um pretexto para o ressabiamento dos “has-been” (como Cavaco Silva). Atrás da máscara do coronavírus, há muito quem esconda o desconforto por viver em democracia e ter instituições que a representem. Não é apenas por nostalgia de um salazarismo que muitos deles não terão sequer conhecido, mas pela imagem mítica que interiorizaram e recalcaram do autoritarismo do regime derrubado há quarenta e seis anos a 25 de Abril. Eles têm vergonha em assumi-lo e é sobretudo isso que se torna “vergonhoso”.

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