A vida nocturna, uma prioridade de Estado em tempos de pós-pandemia

Sendo a vida nocturna central na indústria do turismo em Lisboa, é precisamente neste ponto que surge a grande preocupação partilhada entre diferentes actores da noite lisboeta: Pode o sector do lazer nocturno sobreviver aos efeitos económicos da pandemia sem uma política pública dedicada ao sector?

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Nuno Ferreira Santos

A pandemia de covid-19 e o subsequente decreto do estado de emergência em vários países teve como consequência o encerramento de empresas não essenciais. Um número crescente de vozes internacionais da indústria do lazer nocturno – nomeadamente da Europa, Reino Unido e América do Norte – têm salientado a sua preocupação face às profundas consequências que a interrupção indefinida da referida actividade económica pode ter para o sector, incluindo também as actividades relacionadas (distribuição, grupos musicais e outros performers artísticos).

Com a progressiva destruição de milhares de empregos, e consequente desequilíbrio financeiro crescente no sector, o encerramento definitivo de um número importante de restaurantes, bares (com ou sem espaço de dança) e discotecas emerge como um cenário mais do que possível. Aos efeitos (também) negativos da turistificação da noite lisboeta, juntamente com a ausência de uma vontade institucional clara de incorporar a vida nocturna como parte integrante do sector cultural da cidade (e das suas políticas), os efeitos da pandemia da covid-19 apresenta-nos um cenário pós-pandémico fortemente incerto. Hoje, já no segundo mês de confinamento, esse cenário é mais incerto e preocupante do que nunca.

A esperança de alguns dos detractores que desejam o fim da vida nocturna confronta-se com a extrema preocupação por parte dos amantes da noite, para quem o aspecto puramente económico desta crise pandémica (capitalista) é claramente ultrapassado por outros tipos de preocupações: a perda da noite como espaço e tempo para se divertir com os amigos, conhecer novas pessoas, dançar, descobrir novas músicas e sentir a experiência de uma conexão instantânea extraordinária, até incrivelmente íntima, num espaço lotado de desconhecidos.

Nos nossos trabalhos de pesquisa sobre a noite, temo-nos deparado que para os amantes da noite a transgressão habitualmente associada ao after dark não é apenas um mecanismo de diversão hedonista, mas uma forma de evasão de uma vida diária cada vez mais precária e de extrema fragilidade e incerteza angustiantes. Um cocktail de Foucault, Bakhtin e Baudrillard aproxima-nos a esse complexo mundo da noite – dançando ou não dançando – como uma evasão simulada de uma vida quotidiana caracterizada pela opressão e repressão (especialmente feminizadas, racializadas e de classe) e pela névoa espessa que nos impede vislumbrar um horizonte quer individual quer colectivo. Diante disso, escapar, imaginar, sonhar; a noite como um espaço/tempo de resistência e afirmação. Por isso, não nos deveria surpreender que, na actual situação de confinamento, muitos noctívagos, DJ e promotores da indústria do lazer nocturno reagiram com rapidez e criaram toda uma rede de iniciativas de streaming desde as suas casas, garagens ou até desde clubes vazios, o que destaca o valor social e cultural da noite nos tempos que correm. A noite continua, digitalizada e em casa, mas perde o seu carácter social e convivial.

No entanto, o retorno à normalidade na cidade nocturna levanta inúmeras dúvidas e incertezas. O estabelecimento do distanciamento físico (como se o distanciamento social não estivesse já operativo entre as classes altas e classes trabalhadoras) e a conversão da condição biológica das pessoas num dispositivo biopolítico de controlo social e geração de novas políticas segregacionistas entre “os saudáveis” e “os doentes” acarreta um desafio de magnitude inimaginável para a indústria do lazer nocturno. A limitação drástica da lotação dos bares, restaurantes, clubes e discotecas, bem como a adopção de medidas higiénicas, produzirá tensões extraordinárias na contabilidade dos negócios, nomeadamente, e com especial ênfase, naqueles de menor dimensão e que não estão protegidos por fundos de investimento imobiliário ou grupos empresariais do sector do lazer.

Com efeito, aqueles que pertencem aos maiores grupos operacionais do nosso país têm ainda alguma capacidade para mobilizar estratégias de contingência que podem até estender-se por um tempo mais ou menos prolongado. No entanto, grande parte do tecido da cidade nocturna não possui, hoje, nem essa capacidade financeira, nem liquidez suficiente para o enfrentar, sendo declaradamente optimista uma visão que aponte para uma abertura do sector condicionada a uma extrema limitação da capacidade das suas instalações. Sendo a vida nocturna central na indústria do turismo em Lisboa, é precisamente neste ponto que surge a grande preocupação partilhada entre diferentes actores da noite lisboeta: Pode o sector do lazer nocturno sobreviver aos efeitos económicos da pandemia sem uma política pública dedicada ao sector?

O próximo cenário pós-pandemia deveria identificar a vida nocturna – e os seus diferentes espaços que costumam actuar como salas de reuniões, concertos e até produção musical – como parte intrínseca das políticas culturais, quer ao nível autárquico, quer ao nível nacional. A esta proposta a médio prazo – apesar da expectável arquitectura burocrática de muitas das medidas de restabelecimento económico já conhecida – é necessário acrescentar a necessidade de promover a noite (e, portanto, romper com sua dinâmica frequentemente segregacionista) como mecanismo e fonte de bem-estar sócio emocional, inclusão e construção da comunidade.

Aos enormes impactos socioeconómicos ainda indefinidos relacionados com a pandemia covid-19 juntam-se os impactos psicológicos e emocionais, principalmente entre as centenas de pessoas que, neste Portugal do empreendedorismo digital e da WebSummit, continuam precarizadas. A noite e toda a sua extraordinária rede de significados individuais e colectivos podem constituir um mecanismo eficiente de bem-estar socioemocional e apoio psicológico mútuo comunitário após um período confinamento e isolamento social prolongados. Partilhar, empatia, diversão e escapismo; resistir e começar de novo.

*Jordi Nofre é investigador principal FCT no CICS.NOVA e coordenador da rede LXNIGHTS. João C. Martins é doutorado em Sociologia Urbana, bolseiro de pós-doutoramento em Património Cultural, Lazer e Regeneração Urbana e colaborador da LXNIGHTS; Iñigo Sánchez-Fuarros é investigador contratado na NOVA FCSH e coordenador do projecto Sounds Of TourismCristiana Vale Pires é investigadora na FEP-UCP e membro da Associação Kosmicare.

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