As portas que Abril abriu

É a primeira vez, em quase dez anos, que não vou até ao Ateneu, na Sé Velha em Coimbra, para celebrar a noite de Abril. Todos os anos ali se encontra aquele povo que luta durante o ano inteiro a celebrar uma data que nos diz tanto.

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Rui Gaudencio

É a primeira vez, em quase dez anos, que não vou até ao Ateneu, na Sé Velha em Coimbra, para celebrar a noite de Abril. Todos os anos ali se encontra aquele povo que luta durante o ano inteiro a celebrar uma data que nos diz tanto. As comemorações do 25 de Abril em Coimbra cheiram a cravo e a povo, sabem a luta e a conquista. Sentamo-nos a ouvir a música de muitos que ali cantam Abril e erguem punhos pela liberdade. Pela meia-noite queima-se o fascista na rua do Cabido e canta-se a Grândola em uníssono com todos os gritos de liberdade. É uma noite bonita.

Este ano não vamos poder descer a Sá da Bandeira envergando as reivindicações pelas quais lutamos, nem nos vamos juntar no pátio da inquisição para cantarmos os sonhos de que Abril é feito. Apesar do tempo em que vivemos, vamos cantar a Grândola em todas as janelas desta cidade e deste país para lembrar àqueles que sempre quiseram renegar a revolução que ainda estamos aqui com a mesma vontade e a mesma esperança do povo que saiu à rua em 1974 para se libertar dos grilhões do fascismo, da opressão e da guerra. Foram muitas as portas que Abril abriu e que Ary dos Santos tão bem descreveu em poema — e que ninguém pense, por um segundo que seja, que a revolução é apenas um marco simbólico bem catalogado numa gaveta da história. É em tempos como este que os valores da revolução se mostram como imprescindíveis para um Portugal com futuro.

O direito à livre associação, ao sindicalismo, à manifestação e à greve, mas também o direito à liberdade sexual e religiosa, partidária e individual, o direito à igualdade entre homens e mulheres, e outros tantos que hoje temos como garantidos foram conquistados com sangue e suor por milhares de resistentes antifascistas que tornaram Abril possível. Hoje, lemos e ouvimos muitas coisas nas redes sociais e nos meios de comunicação que ofendem o mais elementar apego à democracia e à liberdade. Ouvimos dizer que este é o Abril de uns quantos privilegiados, que o povo não se identifica com a revolução, que esta é apanágio dos velhos do regime e que nada diz às gerações mais jovens. É comum ouvir-se as mais variadas justificações para que Abril não seja lembrado — e pior, para que não seja cumprido. A diferença é que este ano essas vozes saudosistas tiveram mais eco graças ao contexto em que vivemos, porque nunca deixaram de tentar reescrever a história e de escamotear o facto de ter existido em Portugal uma ditadura fascista.

A prova de que Abril não é dos velhos é que todos os anos são milhares os jovens que se manifestam na Avenida da Liberdade e em outras tantas avenidas deste país por melhores salários, melhores condições de trabalho, pelo fim da precariedade, pelo direito à habitação, pelo direito a uma escola pública, a um ensino superior democrático e a uma vida digna. Mas, mais do que isso, são milhares os jovens que todos os dias lutam pela liberdade de poderem ter uma melhor educação e melhores condições de vida. Abril não é história, é revolução, e esta não pára até que não exista em Portugal a exploração do ser humano pelo ser humano. É verdade que muito do que se sonhou em Abril de 1974 não é, ainda hoje, uma realidade, o que só reforça a necessidade de não o esquecer e de continuar a manter abertas as portas que Abril abriu. O povo que luta estará sempre ligado a Abril em todas as suas acções de luta e de progresso.

Desde Abril que os cravos saem à rua contra todas as formas de opressão, seja social ou económica, e é por estas e por outras que ainda ninguém conseguiu fechar as portas que Abril abriu.

25 de Abril sempre, fascismo nunca mais.

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