Cheira a pressão de ar

A decisão é sobre a resposta mínima numa crise extraordinária. Ficaremos a saber se a União Europeia aprendeu algo com a crise anterior e as mudanças políticas que ela desencadeou.

Ontem decorreu a quarta reunião do Conselho Europeu desde que a pandemia atingiu a Europa. Reuniões há muitas, decisões são poucas. O novo desporto europeu parece ser o pingue pongue, um jogo do empurra entre decisores.

Em reunião anterior, o Conselho Europeu não se entendeu sobre uma resposta à crise e pediu ao Eurogrupo para descalçar a bota. Por sua vez, o monte de zeros do júbilo de Mário Centeno mostrou ser um monte de dívida, porque a discussão sobre o que verdadeiramente interessava, um verdadeiro Fundo de Recuperação, foi recambiada pelo Eurogrupo para nova reunião do Conselho Europeu. Ontem tivemos nova inconclusão, com o Conselho a empurrar o problema para a Comissão Europeia, que tem agora duas semanas para apresentar um plano. O dia D passou para 6 de maio. Parece que o D é mesmo de derrapagem, porque as decisões tardam enquanto a crise se instala.

A presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, fez o resumo mais certeiro: o principal risco é o da União Europeia fazer muito pouco e demasiado tarde para proteger a economia dos efeitos da pandemia do novo coronavírus. E alertou com a destruição que está à vista, prevendo uma queda de 15% no PIB da zona euro em 2020.

O acordo possível no Conselho Europeu de ontem foi sobre o que já não apresentava grandes dúvidas. O que havia saído do Eurogrupo pode ter empolgado o ego de Centeno, mas foi mais um euroflop, um balde de água fria. As três linhas de crédito são mais instrumentos de dívida que continuam a colocar em desigualdade os países em função do peso das suas dívidas públicas. A ratificação que o Conselho fez destas linhas de crédito não faz palpitar o coração de nenhum europeísta.

O verdadeiro debate, fundamental para o futuro dos povos, é sobre o Fundo de Recuperação Económica. Depois de uma posição clara do Parlamento Europeu sobre a necessidade deste instrumento, depois do posicionamento de Portugal, Espanha, Itália e até da França a favor da sua criação, o Conselho Europeu tinha na mão a decisão histórica. Não foi desta.

Um nota prévia antes de aprofundar este assunto: a criação de um Fundo de Recuperação Económica não é nenhuma excentricidade. É uma proposta essencial, bastante sensata e que, por si só, não delimita grandes diferenças entre esquerda e direita, como se viu no Parlamento Europeu e se percebe noutros continentes. Essa delimitação será bem mais visível na forma como esses dinheiros serão aplicados, mas essa é outra conversa. A grande clivagem é de confiança e solidariedade entre países europeus e aí ressuscitam os fantasmas do passado entre o norte e sul da Europa.

O mandato para a Comissão Europeia materializar o Fundo de Recuperação Económica continua a colocar as questões óbvias: como, quando e quanto? Já se percebe que terá um horizonte de três anos, será constituído, pelo menos parcialmente, pela emissão de dívida da Comissão Europeia e estará coordenado com o futuro quadro de financiamento plurianual. O que falta saber são os detalhes que farão toda a diferença: o financiamento dos Estados-membros será realizado através de empréstimos que pesarão sobre as dívidas públicas ou será através de subvenções? Terá algum período de carência, qual a maturidade e a taxa de juro? Logo se verá para onde irá pender o humor alemão.

E qual o valor do Fundo? Pelas perspetivas, os 1,5 biliões de euros servem para início de conversa porque se ficar abaixo disso já se sabe que a manta será curta, mas até devia ser bem superior. E não pode tardar, pois a destruição económica cresce a cada nova análise, o que significa que o tempo conta e não pode ser desperdiçado.

A decisão é sobre a resposta mínima numa crise extraordinária. Ficaremos a saber se a União Europeia aprendeu algo com a crise anterior e as mudanças políticas que ela desencadeou. Mas não encerra as nossas escolhas enquanto país na resposta a um debate que se reabre sobre como se garante a soberania.

Sobre este Fundo, António Costa afirmou que “não é uma fisga, falta saber se é uma pressão de ar ou uma bazuca”. Por todas as hesitações e adiamentos, cheira a pressão de ar.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção