Afinal estamos vivos

Atrás deste tempo outro tempo vem. Temos que voltar à rua, ao espaço público e convém que possamos levar alguma coisa desta experiência individual e colectiva. Podemos sair de casa acreditando mais no poder que temos sobre a realidade.

Este vírus veio inicialmente com pezinhos de lã como que a pedir licença. Mas de imediato, numa surpreendente alteração do movimento, ameaçou morder-nos, com a boca arreganhada subitamente reconhecida de velhas histórias infantis, mágicas e simultaneamente aterradoras, e os seus dentes paradoxalmente invisíveis. Um vírus não é propriamente um ser vivo, mas nem isso o diminuiu. Um vírus é um parasita celular, material genético sem metabolismo próprio que precisa de uma célula para se activar e multiplicar. O seu mundo é infra microscópico óptico.

A OMS hesitou em declarar ou não declarar pandemia e de repente achamo-nos numa situação que nenhum guionista, por talentoso que fosse, teria imaginado. Todos, em todo o planeta, metidos voluntariamente em nossas casas mais que obrigados a uma quarentena que o Estado, constatando o facto, acabaria por ordenar. Foi assim em Portugal e um pouco por toda a parte com timing diferente e particularidades próprias que um dia mais tarde a fita do tempo talvez permita investigar.

O caso era sério. Como nas pragas que a nossa memória já não reteve, havia uma ameaça e a morte andava à solta. Não como sempre andou e continuará a andar, mas com estatísticas diárias e detalhadas, à hora do almoço. Não porque a incidência se tornasse avassaladora, mas porque aparentemente podia tocar qualquer um de nós, como uma lotaria negra. E o mesmo por todo o mundo que hoje está ao alcance de um interruptor da TV ou do PC, ou de todos os seus fantásticos sucedâneos. E que não usamos habitualmente, como o nome faria supor, para interromper e nos recolhermos ao nosso silêncio. Ou à dimensão do lugar onde na realidade estamos. À nossa escala.

Mas, desta vez, houve uma espécie de milagre. Subitamente acordámos de um certo torpor que nos anestesiava quase até ao coma induzido. Saíamos de manhã ensonados a caminho do trabalho no incómodo sobrelotado cacilheiro ou autocarro, ou na entediante fila de trânsito, repetíamos procedimentos distraindo-nos do absurdo ou da inutilidade num mundo que outrora diríamos alienado, mas agora nos parecia sem alternativa e educadamente integrado. E ao fim de semana fingíamos que nos libertávamos em momentos psicadélicos ou em futebol de bancada. E subitamente pareceu-nos que o sonho seria possível, animados é certo pelo atrevimento da “geringonça” quase esquecida.

Podia ser o parisiense Maio de 68, o nosso oportuno 25 de Abril que agora celebramos, ou a queda do muro em Berlim, recordam os velhos mais vulneráveis ao vírus caçador que nos poderia apanhar um a um no espaço público. Não precisámos dos peritos médicos ou financeiros que, afinal, nem sabiam tudo o que iria acontecer e, com humildade, emendavam a mão quando necessário, mesmo sob os protestos dos que procuravam em velhas cartilhas a chave para entender o momento e a novidade. Os doutrinadores da praça pública, conforme inclinações prévias mal disfarçadas, diagnosticaram obediência aprendida em tempos sombrios ou pânico descontrolado para um perigo, objectivamente, de pouca monta. Mas nós não nos resignámos nem perdemos a cabeça. Em casa recreámo-nos (ou recriámo-nos) com mais saúde mental do que a que nos era reconhecida, graças às novas plataformas digitais pudemos embarcar em tele-reuniões, tele-entrevistas, tele-consultas, tele-ensino, tele-trabalho, e usufruímos do video on demand, do live streaming, ou dos videojogos com parceiros à distância.

Afinal estamos vivos e optamos por continuar a viver. No pequeno grupo ou na colectividade maior não nos temos saído mal. E podemo-nos comparar com os outros num ranking mais justo que o das agências de rating que procuravam fazer passar por objectivo um cenário que afinal era também viral, material inerte à procura de penetrar na estrutura celular vital de toda uma sociedade global. Vamos precisar de lembrar essa vivacidade quando a ressaca vier acenar-nos com as velhas fórmulas económicas que nos podem desequilibrar.

Psiquiatras, psicólogos e terapeutas familiares avisaram-nos que no nosso pequeno espaço doméstico se podia agravar muita da patologia familiar latente que nos perseguia. Mas desta vez talvez se tenham enganado. O tempo era de mudança e trazia o apelo da liberdade e não da aparente prisão a que, pelo contrário, antes nos íamos habituando na pura repetição de uma fictícia inevitabilidade. Era o reino do paradoxo. Afinal era possível ter os aviões quase todos em terra, e os comboios com uma dúzia de passageiros, e uma súbita descarbonização do planeta. Demos o nosso melhor, reinventámos pequenas ou grandes indústrias ou comércios às nossas necessidades, de máscaras, gel desinfectante, viseiras ou cogulas, reaprendendo a contar em primeiro lugar connosco próprios e a ser inventivos. Levámos as encomendas ao domicílio mesmo sem as motoretas que vinham invadindo a cidade numa apropriação nova do ditado de Maomé e a montanha. E soubemos mostrar a nossa parte de generosidade e abnegação. Dentro das famílias, este tempo dilatado do confinamento trouxe-nos em muitos casos a experiência de não ter tempo para nada e a multiplicação de interacções abriu possibilidades inesperadas de recomposição e mudança que menosprezávamos. Havemos de ter saudades.

Mas o tempo na realidade não pára e a vida humana não atinge a eternidade. É a natalidade que se opõe à mortalidade, como Hannah Arendt muito bem formulou. Por isso, é possível renascer e é melhor até que tentar parar o tempo que Heráclito tinha percebido na sua perfeita liquidez. Atrás deste tempo outro tempo vem. Temos que voltar à rua, ao espaço público e convém que possamos levar alguma coisa desta experiência individual e colectiva. Podemos sair de casa acreditando mais no poder que temos sobre a realidade. Os terapeutas sistémicos (familiares, psicodramáticos ou dialogistas) percebem bem que a mudança que nos levou para casa se tem que equilibrar com a homeostasia que nos faz regressar à rua, num equilíbrio que é o da vida até ao nível celular e infra celular, mas também na fascinante matemática da saúde pública, e que tudo isso, no fundo, até é a essência orgânica da democracia. Como se diz em termos revolucionários, a luta continua. E temos que continuar, se possível com mais atenção aos boletins epidemiológicos como espelho regulador da imagem de nós mesmos.

Médico Psiquiatra e Terapeuta Familiar

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