O crime compensa em tempo de pandemia

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Sob a capa do covid-19, o Governo [da Índia] está a movimentar-se para prender jovens estudantes, para processar advogados, directores de jornais, activistas e intelectuais. Alguns deles foram recentemente presos.” Arundhati Roy, escritora indiana

O medo corrói

A OpenDemocracy divulgou esta semana uma lista de abusos cometidos por governos de vários países em diferentes continentes que, aproveitando as medidas de excepção para combater a pandemia de covid-19, atacam oposições, dissidentes, jornalistas e activistas, prendendo, calando e até ameaçando de morte aqueles que ousam manter opiniões contrárias às suas. O medo das pessoas em relação ao coronavírus, as condicionantes ao exercer da cidadania impostas pelas medidas de emergência e a tendência para o autoritarismo que já se vinha sentindo no mundo de há uns anos a esta parte conjugam-se numa situação perfeita para coartar as liberdades políticas e agravar ainda mais o estado das democracias no mundo. Deixado com mais poder do que devia, o Governo nacionalista de Narendra Modi prossegue a sua hindustização da Índia, ameaçando transformar os muçulmanos em cidadãos de segunda num país que é tanto deles como de qualquer militante do Partido do Povo Indiano, actualmente no poder. Na Rússia, o jornal Novaya Gazeta decidiu apagar uma investigação às medidas restritivas por causa da covid-19 impostas pelo Governo da Tchetchénia, depois de o líder tchetcheno, Ramzan Kadirov, ter ameaçado o jornalista que escreveu o artigo.

Assassinos, sim, presos políticos, não

Entre as medidas aplicadas pela Turquia para lutar contra a covid-19 – outro Governo que reagiu tarde à pandemia – está a libertação de pessoas das prisões para evitar o risco de contágio, mas os critérios usados para seleccionar os candidatos não incluem os milhares de presos políticos que encheram as cadeias do país depois da alegada tentativa de golpe de Estado falhada de 2016. Mas incluem Allaatin Cakici, membro da máfia e militante dos Lobos Cinzentos, conhecida organização da extrema-direita. Cakici é um assassino condenado que além de matar curdos e activistas de esquerda, também assassinou a mulher. Devlet Bahceli, líder do MHP, partido de extrema-direita que apoia o Executivo, vinha pressionando o Presidente Recep Erdogan para amnistiar Cakici desde 2018, o coronavírus serviu de desculpa. Ao todo, 90 mil presos foram enviados para casa, em prisão condicional ou domiciliária, nenhum dos que foram condenados por alegadas ligações ao golpe, onde se incluem juízes, jornalistas, activistas de direitos humanos, académicos e funcionários públicos que em algum momento criticaram os tiques autoritários de Erdogan. Muitos nem sequer foram ainda julgados, outros cumprem penas excessivamente longas para os ditos crimes que cometeram.

O crime compensa

A União Europeia vai dar à Hungria e Polónia, no âmbito da Iniciativa de Investimento de Resposta ao Coronavírus, muito mais dinheiro que à Itália e Espanha, os Estados-membros mais afectados pela doença. Os Governos de Viktor Orbán e de Mateusz Morawiecki que tudo têm feito para corroer as suas democracias e os alicerces da Europa comunitária, vão ser assim recompensados com fatias maiores dos 37 mil milhões de euros, mesmo que o primeiro tenha usado a pandemia para passar a governar por decreto como o “ditadorzinho” que Jean-Claude Juncker lhe chamou um dia e o segundo tenha insistido em levar por diante as eleições presidenciais de 10 de Maio, pondo todas as pessoas a votar por correio, só porque as sondagens são mais favoráveis agora ao Partido da Lei e Justiça de Jaroslaw Kaczynszki. Pelos cálculos feitos pela European Stability Iniative, citados esta semana pelo New York Times, Itália, que tem mais de 187 mil casos e 25 mil mortos pela pandemia, tem direito a 2,3 mil milhões de euros, ou 0,1% do seu PIB, enquanto a Hungria, com cerca de 2300 casos e 239 mortos, consegue 5,6 mil milhões de euros, equivalente a 3,9% do seu PIB. A Espanha, o país europeu com mais casos – acima de 213 mil –, consegue uma verba que equivale apenas a 0,3 do seu PIB.

Prender políticos

Na Bolívia, onde as eleições de 3 de Maio foram adiadas pelo Governo interino de Jeanine Áñez, que exerce como Presidente apesar de o seu partido ter apenas dois deputados, uma presidente de câmara da oposição foi detida por alegadamente ter violado as regras do estado de emergência. Patricia Arce, do Movimento para o Socialismo (MAS), do ex-Presidente Evo Morales, actualmente no exílio na Argentina, denunciou que agentes da Força Especial Contra o Crime a detiveram com acusações falsas de que violara a lei de emergência, promovendo ajuntamentos e consumindo de álcool. Afinal, o grupo da presidente da Câmara de Vinto, no departamento de Cochabamba, compunha-se dos cinco filhos, a namorada de um deles e o motorista, e os dois testes de alcoolemia que lhe realizaram na esquadra deram negativo. O Provedor de Justiça já havia denunciado a existência de detenções ilegais de autoridades no departamento de Cochambamba, bastião do MAS, que são sempre justificados pelo Governo como sendo no âmbito do combate à covid-19. Em Novembro, quando Morales se viu obrigado a fugir por temer pela sua vida, Arce foi sequestrada por adversários políticos, que lhe raparam o cabelo e pintaram de vermelho para a intimidar a não assumir o cargo para o qual tinha sido eleita.

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