Dinamarca e o travão às empresas de paraísos fiscais: “Simplesmente não é justo”

Ministro da Economia dinamarquês defende que as empresas não podem pedir ajuda e, no dia seguinte, “virar as costas à comunidade”. Em Copenhaga, salta à vista o consenso à esquerda e à direita. Falta conhecer os detalhes técnicos.

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Em Copenhaga, o acordo de apoio às empresas contou com o apoio de dez dos 13 partidos parlamentares Manuel Roberto

Os contornos estão por desvendar e a eficácia por avaliar, mas o posicionamento político é claro na era da transparência e da cooperação fiscal. O governo dinamarquês decidiu excluir do pacote de ajudas económicas da covid-19 as empresas que estejam presentes em centros financeiros offshore e explica porquê: fazê-lo é, para os Sociais-Democratas liderados pela primeira-ministra Mette Frederiksen, um imperativo de justiça fiscal.

Ao PÚBLICO, o ministro dinamarquês da Indústria, Empresas e Assuntos Financeiros, Simon Kollerup, afirma qual é o fundamento: “Fomos muito longe, enquanto sociedade, na ajuda a trabalhadores e empresas para que estes possam superar a crise e, até agora, criámos um conjunto de apoios que totalizam quase 400 mil milhões de coroas dinamarquesas [53.600 milhões de euros]. Considero que é um princípio razoável que alguém não pode pedir ajuda à sociedade dinamarquesa num dia e, no dia seguinte, virar as costas à comunidade enviando o dinheiro para um país da lista de paraísos fiscais da União Europeia (UE). Simplesmente não é justo.”

Ainda falta perceber como é que esta barreira vai funcionar em concreto. Sabe-se que tem como alvo as relações económicas com os países da “lista negra” de paraísos fiscais elaborada pela União Europeia, um grupo de 12 países onde se incluem o Panamá e as ilhas Caimão.

Mas não se sabe como será redigida a legislação: se, por exemplo, vai abranger os grupos empresariais que tenham uma ou mais subsidiárias num desses paraísos; se serão empresas dinamarquesas detidas por grupos (beneficiários efectivos) sediados nesses territórios; se a medida será mais abrangente e bane as empresas que comprovadamente tenham realizado esquemas de planeamento fiscal relacionados com essas jurisdições, como sugeriu, com critérios ainda mais latos, a Tax Justice Network, uma rede pela defesa da transparência fiscal; ou se poderão ser retirados os apoios concedidos a quem tenha relações económicas opacas com estes territórios.

É eminentemente um posicionamento histórico que Copenhaga quer assumir, tal como fez o governo polaco sob a liderança do partido conservador Lei e Justiça (PiS).

O governo dinamarquês, em funções desde Junho de 2019, é formado inteiramente por ministros do Partido Social-Democrata e conta com o suporte parlamentar de partidos de centro-esquerda — o Partido Popular Socialista, o Partido Social Liberal e a Aliança Vermelha e Verde.

Mas o acordo de combate à crise económica aberta pela pandemia da covid-19, onde se inclui esta medida, contou com um apoio muito mais amplo nos vários quadrantes políticos, da esquerda à direita. Foram dez dos 13 partidos a assinar o documento.​

O governo e os partidos, sublinha o ministro Simon Kollerup, “entenderam que uma empresa não deve receber financiamento do pacote de apoios se estiver sediada num país que está na lista da UE de jurisdições não cooperantes [para efeitos fiscais]”, grupo que neste momento tem 12 territórios terceiros — Panamá, ilhas Caimão, Ilhas Virgens dos Estados Unidos, Samoa Americana, Seicheles, Omã, Ilhas Fiji, Palau, Guame, Samoa, Trindade e Tobago, e Vanuatu.

É um pequeno grupo que os 27 governos europeus decidiram colocar numa “lista negra” (em permanente revisão) por considerarem que ainda não se comprometeram de forma suficiente com os padrões internacionais em termos de transparência, abolição de regimes de tributação zero de rendimentos estrangeiros, troca automática de informações ou adesão aos mecanismos de cooperação ancorados no roteiro da OCDE.

O princípio orientador da medida, afirma ao PÚBLICO Jan Pedersen, professor dinamarquês de direito fiscal na Universidade de Aarhus, é o de abarcar empresas “não estejam envolvidas em [esquemas de] evasão fiscal internacional”.

Será, porém, “difícil determinar que empresas estão ‘sediadas’ nas jurisdições da lista e mesmo que se definam excepções para as empresas que não estejam a fazer evasão fiscal”, o resultado da proibição “será modesto”. Mas, vinca, a decisão tem um lado simbólico. “É uma declaração política, segundo a qual a evasão fiscal internacional é inaceitável”, diz Pedersen, ex-chairman do Nordic Tax Research Council, uma instituição que promove projectos de investigação na área fiscal entre especialistas de cinco países nórdicos (Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suécia e Islândia).

Dentro e fora da UE

Aquele pequeno grupo — que tem no Panamá, depois das revelações dos Panama Papers, um ícone popular do que é um verdadeiro paraíso fiscal — representará menos de 7% da perda de receita da Dinamarca associada à evasão fiscal, já que a esmagadora fatia tem que ver com desvios para outros parceiros da União Europeia, como o Luxemburgo, a Irlanda, Chipre ou Malta.

Para já, os detalhes técnicos sobre a medida estão a ser desenhados pelo governo, sendo certo que não são abrangidas empresas sediadas noutros países da União Europeia com regimes fiscais vistos como de concorrência mais aguerrida. O acordo com os partidos parlamentares, clarificou o Ministério da Economia dinamarquês, “irá respeitar a legislação europeia e outros compromissos internacionais que a Dinamarca e a UE assumiram”.

A medida surgiu pela mão do partido de esquerda Aliança Vermelha e Verde, que tem na luta contra a evasão fiscal internacional uma das suas bandeiras, e foi abraçada por dez dos 13 partidos que subscreveram o entendimento: além dos sociais-democratas (Socialdemokratiet) e da Aliança Vermelha e Verde (Enhedslisten), respaldaram o entendimento o Partido Liberal (Venstre, anteriormente no Governo), o Partido Popular Dinamarquês (Dansk Folkeparti), o Partido Social Liberal (Radikale Venstre), o Partido Popular Socialista (Socialistisk Folkeparti), o Partido Conservador (Konservative Folkeparti ), a Nova Direita (Nye Borgerlige), a Aliança Liberal (Liberal Alliance) e A Alternativa (Alternativet).

É um sinal de que a atenção ao problema, diz Jan Pedersen, “está a aumentar entre os partidos” tanto à esquerda como à direita. Não é assim apenas em Copenhaga ou Varsóvia. Ainda em Fevereiro, a propósito da actualização da “lista negra”, os socialistas europeus — a segunda maior família política do Parlamento Europeu — defendiam que, “para ser credível, a lista negra da UE não pode continuar a deixar de olhar para os paraísos fiscais na União Europeia”.

Destinatário directo: os ministros das Finanças dos 27, para que enfrentem “o elefante no meio da sala” e investiguem “os países que deveriam ser listados, seja os de dentro seja os de fora da UE”, como então clamou o eurodeputado espanhol Jonás Fernández, coordenador dos S&D na Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários.

Em Portugal, a decisão da Dinamarca e Polónia chegou a ser lembrada esta semana numa audição parlamentar do ministro da Economia pelo deputado do PCP Bruno Dias, mas Pedro Siza Vieira não comentou o assunto directamente.

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