Rumpitur invidia quidam: um breve ensaio sobre a degradação da advocacia

Um advogado que usurpa excertos e expressões de artigos de outro advogado revela evidente inidoneidade para o exercício da profissão e uma inclinação para a responsabilidade disciplinar e criminal. Revela também estupidez.

Martial (Marcus Valerius Martialis) foi um poeta romano que viveu entre o ano 38 e 102 D.C. sob o reinado dos imperadores Domiciano, Nerva e Trajano.

Ficou conhecido pelos epigramas, breves textos poéticos de índole marcadamente satírica. Um dos seus epigramas mais famosos é aquele que empresta título a este texto – Rumpitur invidia quidam [1] (e quando irrompem os invejosos). Nele, dirigindo-se ao amigo Iulli (Julius), Martial refere a existência de alguém que lhe inveja aspetos da sua vida, dos bens materiais que possui e amigos que lhe nutrem respeito até ao facto de ser benquisto pelos próprios imperadores.

Muitos séculos mais tarde, Orlando di Lasso, compositor flamengo do século XVI, e um dos maiores compositores do Renascimento tardio, autor de mais de duas mil obras em latim, alemão, francês e italiano, compôs uma obra musical para aquele famoso epigrama.

A verdade é que o título do epigrama de Martial assenta que nem uma luva aos tempos que vivemos, e é, também, legenda perfeita para o episódio que aqui vos narro.

Não se nega que estes são tempos difíceis. Muito difíceis. Haverá fome, não tenho dúvidas disso. Muita fome. No entanto, ainda que no seio de uma crise sanitária e, logo depois, económica, devemos todos pugnar para que se não percam os valores e qualidades das pessoas de bem, dignas e idóneas. Isso e assumir comportamentos que sejam consentâneos com o ordenamento jurídico português, designadamente, o jurídico-penal.

Ora, tais particulares características das pessoas com dignidade impõe-se que se revelem com ainda maior acuidade quando, em elas mesmas, se concentra o dever deontológico e estatutário decorrente de essa pessoa ser titular de uma profissão regulada e de interesse público, como é o caso do advogado.

Sucede pois que, há uns dias, percorria eu a página da Internet de um jornal de grande referência nacional quando, para meu grande espanto, deteto um artigo, assinado por um colega de profissão, eivado de frases e expressões copiadas de dois artigos meus versando temas sobre a advocacia e o seu exercício publicados há mais de dois meses num outro jornal de referência nacional.

A autoria era atribuída ao suposto autor cujo nome encimava o artigo, ladeado de uma fotografia com cara de contencioso e braços cruzados ao jeito de craque da barra.

Tal artigo foi redigido sem qualquer citação de sorte a criar a convicção no leitor de que tais expressões são do punho e lavra originária de quem na verdade não são.

Ou seja, crime de usurpação previsto e punido pelo art. 195.º do Código dos Direitos de Autor e Direitos Conexos – “plágio”, para usar a formulação mais comum, não obstante a serôdia e insuficiente operação de cosmética operada pelo pseudo-autor após protesto.

Confesso que a primeira sensação foi a de lisonja, com sinceridade. Mas rapidamente se abriu lugar ao asco, ao nojo. O plágio provoca na vítima uma derradeira sensação de esbulho em que é comum o plagiado acometer-se a um angustiado e resignado silêncio, muitas vezes fundado na crença que não haverá qualquer condenação ou retratação.

Ainda que com mórbida ironia, alguém me dizia que me deveria sentir lisonjeado e enaltecido porquanto, na antiguidade, a imitatio era um louvor à obra do imitado.

É verdade.

A este propósito, escreveu Mariana Beraldo Santana do Amaral da Rocha na sua dissertação [2] de mestrado defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro intitulada “Rumpitur Invidia Quidam”: Um estudo sobre os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos epigrammata de Marcial: “Na Antiguidade era esperado dos autores que imitassem aos escritores do passado, que suas obras se igualassem aos modelos antigos e esta imitação tinha que ser expressa e conhecida, senão seria plágio. Não bastava ao autor imitar: o ato da imitatio vinha acompanhado do desejo de superação, chamado de aemulatio, sentimento que leva o indivíduo a igualar ou superar algo/alguém por mérito e consiste no esforço contínuo para igualar a alguém em alguma coisa.”

Falho todavia, e naturalmente, por três ordens de razão. Em primeiro lugar, não sou de tão vetusta idade para que me possam considerar um clássico. Em segundo, e de atroz mas necessária evidência, a pouca qualidade do que escrevo não me permite alcandorar ao génio literário dos Antigos. Por fim, e na dependência desta última, a aemulatio revela-se impossível – por sofrível – na medida em que o texto do usurpador enferma de erros de sintaxe e de concordância.

A consequência disto é que o que o colega fez no seu artigo não pode, pois, considerar-se o exercício de um louvor temperado pelos antigos conceitos de imitatio ou aemulatio.

A consequência, essa, é outra. Qual? Plagium!

A crise sanitária não pode nem deve ser oportunidade para uma primária, pueril e boçal violação da Lei, seja ela a que protege a criação intelectual prevista naquele código, como a que impõe aos advogados regras e normas de conduta – o Estatuto da Ordem dos Advogados.

Estou inteiramente com a colega presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, Dr.ª Alexandra Bordalo Gonçalves, quando, no seu artigo publicado no espaço de opinião do PÚBLICO de 9 de abril passado, afirma que “não vale tudo”, referindo-se aos artifícios dos advogados que, num momento de consabida dificuldade para a advocacia, facilmente atropelam as regras deontológicas consagradas no Estatuto.

Pois não vale. Mas, infelizmente, vivemos em Portugal, onde com relativa facilidade o imbecil trapaceiro chega sempre mais alto e mais longe. Seja ele quem for e que profissão exercer.

Não é esta a advocacia que quero para mim. Nem é seguramente desta advocacia que a justiça precisa.

Como já tive oportunidade de escrever, o advogado encontra-se vinculado a um princípio geral de integridade na medida em que é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem, cfr. art. 88.º do EOA.

Um advogado que usurpa excertos e expressões de artigos de outro advogado revela evidente inidoneidade para o exercício da profissão e uma inclinação para a responsabilidade disciplinar e criminal. Revela também estupidez. Para aquelas há solução. Para esta, infelizmente, não há.

Ficarão as ações com quem as pratica, aqui, uma onerosíssima punição de censura e vexame outorgada pela opinião pública, embora para isso se exija que o usurpador seja possuidor – ainda que precário – de alguma boa dose de inteligência e de vergonha na cara.

Neste caso, tenho as minhas sérias dúvidas, confesso.

É que, como dizia Albert Camus, “a estupidez insiste sempre”.

[1] Marcus Valerius Martialis, Rumpitur invidia quidam, Epigrama IX, 97, 95 DC.
[2] Rocha, Mariana Beraldo Santana do Amaral, “Rumpitur Invidia Quidam”: um estudo sobre os conceitos de imitatio, aemulatio e plagium nos Epigrammata de Marcial, Rio de Janeiro, 2016.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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