Celebrar Abril, reinventar a Liberdade e a Vida!

Hoje, neste Abril que nos deu a liberdade de nos libertarmos da tutela do marido e do Estado; de podermos escolher e decidir os filhos que desejamos; que garantiu proteção às mulheres vítimas de violência doméstica ; neste Abril, apesar de não poder sair à rua, nada nem ninguém me impedirá de gritar bem alto – Viva a Liberdade!

Este é o primeiro Abril em que celebramos a Liberdade em situação de suspensão parcial e temporária de vários dos nossos direitos constitucionalmente garantidos.

Este é o Abril que nunca imaginámos ter, que nunca imaginámos viver, onde o mundo, de repente, virou do avesso e um único tema domina as nossas vidas do acordar ao adormecer, tirando mesmo o sono a muitos de nós.

Todos estamos em contacto sem nos tocarmos, todos sabemos tudo de tudo, a informação circula exponencialmente pelas redes e órgãos de comunicação social, mas a incerteza é a nossa companheira dos serões que tivemos de inventar para tornarmos leve esta nossa insustentável leveza do ser, como dizia Milan Kundera. 

Sempre, neste dia, assinalei os Direitos Humanos conquistados, o significado dos valores, a riqueza e a diversidade das opções políticas que nos oprimem ou nos libertam. Assinalei o preço da não subjugação, o modo como fazemos pontes e convergências, como conquistamos oportunidades, que no feminino são sempre mais escassas e dolorosas que no masculino.

Mas hoje, neste Abril, que nos  deu a liberdade de nos libertarmos da tutela do marido e do Estado; de podermos escolher e decidir os filhos que desejamos, e quando os queremos ter, sem o cutelo e a ameaça da prisão; que garantiu igual dignidade legal à hétero e homoparentalidade; que garantiu proteção às mulheres vítimas de violência doméstica e acolheu com grande humanismo os refugiados que nos procuraram; neste Abril, apesar de não poder sair à rua, nada nem ninguém me impedirá de gritar bem alto – Viva a Liberdade!

Tempos difíceis, “tempos sombrios” de que Hannah Arendt nos falou a propósito de outros tempos, onde a luz emergiu da chama da incerteza, vacilante e muitas vezes ténue, onde nada podia acontecer que contrariasse “a solidariedade efetivamente existente do género humano”.

O Papa Francisco, grande humanista destes novos tempos sombrios, tem apelado incessantemente à nossa união coletiva, à salvação de cada um, que passa necessariamente pela salvação de todos, vincando que este é um “tempo para eliminar as desigualdades” e as injustiças que “minam de raiz a saúde de toda a humanidade”.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, pessoa que bem conhecemos pelo seu humanismo e visão de futuro, não se cansa de apelar a respostas coordenadas e urgentes e à solidariedade que esta crise exige. Salienta bem que as pessoas mais afetadas são as mais vulneráveis, entre elas as mulheres e os idosos, e que se devem evitar retrocessos nos direitos humanos conquistados. Peritos das Nações Unidas pedem às lideranças mundiais que apliquem a perspetiva de género para reduzir as desigualdades existentes e o impacto da crise na vida das mulheres, que constituem 70% das equipas médicas e de apoio: 85% das enfermeiras em hospitais de todo o mundo, e 50% do pessoal médico nos países da OCDE. Consideram, ainda, que “as mulheres serão a coluna vertebral de recuperação das comunidades” e que as políticas terão mais impacto se reconhecerem isso.

Não deixa de ser curioso constatar que os países que melhor acautelaram o efeito da pandemia na vida das pessoas são, salvo raras exceções como Portugal, liderados por mulheres – Islândia, Alemanha, Nova Zelândia, Finlândia e Taiwan. 

As medidas de isolamento social têm um forte impacto na vida de todos nós, mas ainda mais na das mulheres que, de repente, se vêm obrigadas a ser produtivas em teletrabalho, a apoiar os filhos na escola em casa e a braços com a esmagadora maioria do trabalho doméstico, nem antes, nem agora, remunerado. É a tal reprodução invisível da força de trabalho que alimenta, e sem a qual, como dizem os sociólogos, a força de trabalho não existiria. Também são as mulheres que se confrontam com o terrível dilema de terem de ficar em casa com o agressor quando a casa não constitui, de todo, o lugar mais seguro para se abrigarem.

É tempo de uma nova normalidade, de um “novo mundo”, como diz António Costa, que não se cansa de definir medidas para mitigar os efeitos desta terrível e inesperada crise pandémica na vida das pessoas, das famílias e das empresas, para garantir que os nossos rendimentos não serão afetados e a austeridade não será retomada. Apela incessantemente à solidariedade europeia, na convicção de que as soluções passam pela emergência desse princípio fundador que a Europa nem sempre soube honrar.

Não sei como será a vida daqui para a frente, mas qualquer reinvenção tem de passar pela garantia dos direitos humanos conquistados, ou não nos reinventaremos de todo!

Deputada  e presidente das Mulheres Socialistas

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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