Timidamente, os crimes do regime de Assad começaram a ser julgados

É a milhares de quilómetros da Síria, num tribunal regional de uma cidade alemã que os primeiros responsáveis pela tortura de presos políticos começaram a ser julgados.

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Fotografias de vítimas de tortura na Síria também vão ser usadas como prova no julgamento Lucas Jackson / Reuters
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Na sala de audiências do tribunal de Koblenz foram tomadas várias providências por causa da pandemia de covid-19 Reuters/POOL

O primeiro julgamento a envolver potenciais crimes contra a humanidade cometidos durante a guerra na Síria começou esta quinta-feira num tribunal alemão. Vítimas e especialistas em direito internacional dizem que se trata de um passo histórico para que se possa fazer justiça aos horrores do conflito.

No banco dos réus no tribunal de Koblenz sentaram-se pela primeira vez Anwar Raslan, um ex-coronel dos serviços de informação do regime sírio, e o seu antigo subordinado Eyad al-Gharib. Ambos chegaram à Alemanha como requerentes de asilo, depois de desertarem do regime de Bashar al-Assad nos primeiros anos do conflito, e foram detidos no ano passado numa operação policial conjunta entre as autoridades alemãs e francesas.

É o caso de Raslan que concentra mais atenção. O homem de 57 anos era um dos principais responsáveis pela prisão conhecida como “Ramo 251”, gerida pelos serviços secretos em Damasco e usada para deter presos políticos. Os procuradores alemães acreditam que entre Abril de 2011 e Setembro de 2012 por ali passaram quatro mil presos que foram sujeitos a várias formas de tortura.

Pendurados, electrocutados, violados

A primeira sessão do julgamento, que deverá demorar dois anos, serviu precisamente para que as cem páginas da acusação, baseadas nos relatos de 24 testemunhas, começassem a ser lidas pelos procuradores. Ao longo do dia foi descrito como os prisioneiros eram espancados com canos de metal e cabos eléctricos, pendurados durante horas pelos pulsos, electrocutados e violados, diz a Al-Jazeera. Pelo menos 58 detidos morreram no “Ramo 251” durante o período analisado.

Para além das testemunhas, vão servir como provas de acusação várias fotografias de cadáveres de vítimas de tortura nas prisões sírias obtidas por um fotógrafo da polícia conhecido apenas por “Caesar”, que as conseguiu levar para fora do país.

“Como chefe da unidade de investigações, o acusado (…) supervisionou e determinou o uso de tortura sistemática e brutal”, escrevem os procuradores. O então coronel Raslam é acusado de ser cúmplice de crimes contra a humanidade, violação, ofensas sexuais graves e 58 homicídios, e pode incorrer numa pena de prisão perpétua.

Como subordinado, Gharib é acusado de auxílio à tortura e homicídio de 30 pessoas, e pode ser condenado a uma pena de prisão entre os três e os 15 anos.

Os advogados de defesa de Raslam rejeitaram fazer a declaração inicial a que tinham direito, remetendo para um comunicado por escrito que seria divulgado nos próximos dias. A defesa de Gharib questionou a admissibilidade do testemunho que o seu cliente deu à polícia quando foi detido, nos quais confessou os crimes de que é acusado, por não lhe ter sido revelado que as suas declarações poderiam ser usadas contra si.

Mais do que um julgamento

Com quase uma década de guerra na Síria, esta será a primeira vez que dirigentes do regime de Assad vão ser julgados por suspeitas de abusos cometidos durante o conflito. Mais do que os nomes dos réus, é todo o aparato repressor montado pelo ditador sírio contra os seus opositores políticos que vai a julgamento, dizem as vítimas. “Este julgamento vai expor toda a cadeia de comando, julga-se todo o regime”, disse ao El País o advogado do Centro Sírio para os Media e Liberdade de Expressão, Al Bunni, que também irá testemunhar.

A internacionalização do conflito tornou mais difícil a activação dos mecanismos judiciais tradicionais para julgar crimes de guerra. Os vetos da Rússia e da China bloquearam as tentativas de se trazer este tipo de casos a julgamento no Tribunal Penal Internacional, mas um princípio recente adoptado pelo sistema judicial alemão veio abrir novas possibilidades.

Desde 2002 que está em vigor o princípio da jurisdição universal para crimes contra a humanidade na Alemanha, o que permite que sejam julgados crimes deste âmbito mesmo que tenham sido cometidos noutros países. “O argumento a favor da jurisdição universal torna-se muito mais forte num contexto como o da Síria, onde não há realmente outras oportunidades para fazer justiça”, diz o director do Instituto Tahrir para Políticas do Médio Oriente de Washington, Mai el-Sadany, citado pelo site Al-Monitor.

“Há alguns crimes que são tão horrendos que seria uma grande violação do sistema de direito internacional se não fossem julgados”, acrescenta.

Espera-se que as possíveis condenações pelo tribunal de Koblenz abram a perspectiva de que as acusações contra o regime de Assad como um todo venham a ser mais sólidas no futuro e na eventualidade de um julgamento num tribunal internacional. As acusações “atestam que existia este sistema que fazia outros sofrer, portanto podem abrir caminho para casos futuros, uma vez que se provou de alguma forma que o regime sírio é essencialmente criminoso”, explica a professora de Direito da Universidade de Stanford, Beth Van Schaack, citada pelo Al-Monitor.

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