Som e fúria

O Silêncio das Mulheres, de Pat Barker, já referido como uma “Ilíada no feminino”, faz parte de uma tendência de rever os clássicos.

Foto
O Silêncio das Mulheres, já referido como uma “Ilíada no feminino”, centra-se nas vozes silenciadas por milénios de patriarcado Roberto Ricciuti/Getty Images

É difícil encontrar, em toda a história da literatura, uma obra tão violenta como a Ilíada. Homero, quem quer que tenha sido — e se é que existiu — não se coibiu de descrever, com os pormenores mais sanguinolentos e macabros, a longa luta pela conquista da rica cidade de Troia e as existências cheias de “som e fúria” dos seus intervenientes. É comum dizer-se que os 15 693 versos em hexâmetro datílico (a forma tradicional da poesia épica grega) que compõem a Ilíada remetem directamente para um universo “masculino”, viril, para um palco de batalhas e de lutas titânicas com o seu cortejo de horrores e a sua fatal dose de heroísmo. A morte, sempre presente, esmiuçada com todos os detalhes e diversos estádios, é, mais do que qualquer outro tema, a peça central da narrativa. Morre-se em combate, de doença ou maldição — quando Agamémnon recusa devolver uma das suas escravas ao pai, que é sacerdote de Apolo, o deus faz cair sobre o acampamento uma terrível praga — ou, simplesmente, há jovens que são sacrificados como quando Aquiles degola, com as suas próprias mãos, uns tantos rapazes troianos (e todos os cães), nas exéquias de Pátroclo. As batalhas são ferozes, o estrépito do choque entre exércitos, entre armaduras, entre quadrigas e cavalos lançados a toda a velocidade acompanha a carnificina, e o penetrar de espadas e lanças na carne desmembrada dos combatentes compõe cenas de claro grafismo cinematográfico. Nos aquartelamentos, ao fim dos dias de batalha, queimam-se os mortos, tratam-se os feridos e celebram-se vitórias em lautos e ruidosos banquetes com infindáveis libações. É um ambiente de caserna, tumultuoso, caótico, mal-cheiroso, brutal. Todo o poema celebra a agressividade masculina e a aniquilação pela violência. Os homens são impiedosos, bárbaros, funcionam por estímulos e comportam-se como verdadeiras “máquinas” que cumprem as funções mais básicas: lutar, matar, comer, beber, dormir, fornicar, expelir sangue, fezes e urina.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.
Sugerir correcção
Comentar