A vida de uma médica durante a peste

Mostrou-se incapaz de deixar de abraçar a enfermeira, enquanto esta chorava diante de si por ter decidido fazer as malas e deixar a família, nomeadamente o seu menino de olhos azuis, com apenas doze meses de vida.

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Clay Banks/Unsplash

Clara, ou Dra. Clara, como os pacientes lhe costumam chamar, continua com as suas rotinas profissionais apesar da pandemia, embora, se pudesse escolher, preferisse suspender tudo e, como num exercício divino, curar ou pelo menos cancelar as outras enfermidades que continuam a assolar os doentes.

Nestes tempos, o melhor e o pior do seu dia é abrir a porta de casa com a mão direita (nunca teve destreza com a esquerda), a mesma que opera as enfermidades, e recolher-se à exclusividade da sua presença. O melhor e o pior porque, se por um lado, sente um certo alívio por ter sobrevivido a mais um dia de trabalho, por outro é só ali, sozinha, que tem de se confrontar com o medo, o cansaço e a impotência de tentar dar conta de tudo. Por isso, tenta purificar as ideias frustrantes com um duche, embora ultimamente o faça sempre de cabeça baixa. Sente algum calor, pela primeira vez no dia. Com os olhos fechados passeia as mãos pelos cabelos, pela cara. Está ciente da tentativa inútil de asseio mental.

Enquanto a água quente do banho lhe escorre pelo corpo, recorda um dos erros do dia, que não foi bem um erro, mas um gesto humano — a quebra do distanciamento. Mostrou-se incapaz de deixar de abraçar a enfermeira, enquanto esta chorava diante de si por ter decidido fazer as malas e deixar a família, nomeadamente o seu menino de olhos azuis, com apenas doze meses de vida. Demorou a tomar a decisão, era-lhe difícil deixar a família por tempo indeterminado, até ser seguro voltar para casa. A decisão fora tomada por cálculo do prejuízo menor, ou seja, o medo de infectar a família ganhara ao medo de deixar de os ver e de poderem ser infectados de outra maneira. Prejuízo menor. O amor e a dor são sempre avessos à estatística. A enfermeira chorava copiosamente à sua frente. O olhar angustiado, enquanto as lágrimas corriam. “Agora nada pode piorar. Fiz a mala e não sei por quanto tempo não vou poder estar com o meu bebé. Já tenho tantas saudades.” E Clara, sabendo que preferia quebrar a regra de distanciamento a ver quebrar diante dos seus olhos uma pessoa, abraçou-a.

Ainda com a água do duche praticamente a escaldar-lhe a pele das costas, veio-lhe à cabeça uma música dos The Smiths: “Good time for a change/ See, the luck I've had/ Can make a good man/ Turn bad/ So please, please, please/ Let me, let me, let me/ Let me get what I want/ This time.” Não cantou, como costumava fazer; há várias semanas que deixara de cantar em casa. Andava demasiado cansada e apreensiva. Mas as músicas continuam a tocar na sua cabeça durante o banho, e também durante o regresso a casa, e quando se estende no sofá em silêncio; a música como uma oração. Embora seja apenas debaixo da água do duche que Clara junta fé e alquimia, deixando por vezes escapar umas gotas do seu sal.

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