Viver com o vírus

Com a ansiedade colectiva decorrente do confinamento a aumentar também a cada dia, a gestão política obrigou à imposição de datas para um regresso ao quotidiano.

Vamos ter de viver com o vírus, já todos percebemos. Sabemos algumas coisas sobre a forma como se propaga, sobre os sintomas que provoca, sobre o seu grau de mortalidade. Sabemos mais, mas ainda não conhecemos tudo - ele tem ainda zonas de mistério.

Não havendo vacina nem medicamentos comprovadamente eficazes, é tempo de retomarmos o quotidiano e reaprendermos a viver com esse vírus activo e no meio de nós. É apenas mais um, mas foi ele que mudou o mundo tal como o conhecíamos e como o vivíamos. Foi como se tivéssemos entrado numa realidade paralela e agora tivéssemos de voltar àquela que conhecíamos e à qual estávamos habituados.

Depois de se ter encerrado a economia, o modelo capitalista começou a dar sinais de instabilidade e a expor as suas patologias – também ele está afectado pelo vírus e não importa a roupagem com se apresenta, seja a norte-americana, a europeia ou a chinesa. Os défices e as dívidas dispararam, o desemprego começou a subir (nalguns casos em proporções alarmantes). Com a ansiedade colectiva decorrente do confinamento a aumentar também a cada dia, a gestão política obrigou à imposição de datas para um regresso ao quotidiano.

Criou-se um horizonte temporal que tem muito de ilusório, porque as interrogações e as variáveis são ainda muitas. Em França, por exemplo, o Instituto Pasteur indica que em meados de Maio apenas seis por cento dos franceses terão tido uma qualquer forma de contacto com o vírus, o que significa que o país estará muito longe dos valores da tal imunidade colectiva, que terá de ser sempre acima dos 60 por cento, que é quando o vírus deixa de ser um risco para a saúde pública. Por outras palavras, uma segunda vaga não pode ser descartada, com todos os riscos que tal comporta (e embora não seja comparável, porque as sociedades são diferentes, a verdade é que a segunda vaga da gripe espanhola, após a Grande Guerra, foi muito mais mortal do que a primeira).

Haverá uma imposição de porte de máscara nos transportes públicos? É o Estado quem as fornece? São as empresas? As escolas vão funcionar com todos os alunos? Vão também eles ter de usar máscara? Como será a distância social possível nas salas de aula? E nas empresas, como se vão implementar as necessárias barreiras e a distância entre trabalhadores? Na verdade, todos os cenários têm ainda muito de incerto. Certo apenas, nesta próxima fase, é a salvaguarda maior de todos aqueles que puderem manter o teletrabalho, o que não é de todo possível em empresas e empregos onde a proximidade é uma exigência: cafés, restaurantes, hotéis, construção…
O “desconfinamento” terá de ser progressivo, também já se entendeu. Alguns países estão mais adiantados do que outros, o que dá aos outros tempo e instrumentos de análise quanto ao sucesso ou insucesso de uma ou outra medida.

A despistagem terá de ser mais alargada, é uma quase certeza, e a Alemanha, por exemplo, que faz já meio milhão de testes por semana e foi dos países europeus que melhor soube enfrentar o impacto do vírus, já abriu parcialmente o “desconfinamento”. Ainda assim, Ângela Merkel não deixou de alertar que “seria triste que o sucesso adquirido fique reduzido a nada em quinze dias se quisermos ir depressa demais.” É evidente que há, também aqui, trocas de pontos de vista entre capitais, mas nas questões de saúde são os governos quem mais ordena. As estratégias têm muito a ver país a país. Nalguns casos, como em Espanha e França, certas unidades hoteleiras estão a ser requisitadas para doentes de covid-19 que não tenham necessidade de internamento hospitalar.

Certo por todo o lado é a pressão para um regresso à produção, mas gerir esse regresso à economia neste mundo desigual é uma tarefa também ela desigual. Na Índia, por exemplo, a bomba demográfica e a pobreza explosiva obrigou o governo a aliviar as medidas de confinamento, permitindo a milhões de cidadãos retomarem o trabalho sob pena de morrerem de fome, com todos os riscos que isso acarreta em termos de saúde pública; nos Estados Unidos, onde as “almofadas” da segurança social são muito precárias, sucedem-se manifestações para acabar com o confinamento, muitas delas estimuladas pelo presidente Donald Trump, em conflito com governadores da oposição democrata, que têm estratégias diferentes para combater a propagação do novo vírus; no México, os cartéis da droga estão a substituir-se ao governo no apoio às populações nas zonas sob o seu controle; no sul de Itália, a máfia procura também ela usar a pandemia a seu favor, e contando já com os favores que muitos lhe ficarão a dever no futuro.

Em várias latitudes e longitude há sinais não negligenciáveis de explosão social - risco tanto maior quanto mais se sentirem as clivagens sociais e o aumento das desigualdades (de que a distribuição de dividendos aos accionistas por parte de grandes empresas, numa fase como esta, seria um sinal claro de falta de sensibilidade social). Temos, pois, de reconstruir um quotidiano com um vírus que nos ameaça e expõe muitas das nossas fraquezas individuais e colectivas. Ele obriga-nos a todos, cidadãos, governos, organizações multilaterais, a um esforço de decência e humanismo e em relação a todos os outros com quem partilhamos este tempo da História. É um tempo de agir e exigir.

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