Atenção à discriminação em razão da idade

Os idosos não deverão aceitar, apenas por razões de idade, serem sujeitos a limitações assimétricas de deslocação, nem renunciarem ao exercício da sua cidadania ativa, Falemos claro: será totalmente inconstitucional limitar as deslocações e os contactos com os idosos pelo menos até ao fim do ano, como defendeu Ursula von der Leyen.

Estamos confrontados com uma pandemia que tem sido uma experiência profundamente traumática, que condicionará o nosso quotidiano durante muito tempo.

A forma como organizarmos a transição a seguir ao estado de emergência e de confinamento generalizado deixará marcas duradouras para o futuro. Não se trata de voltar à vida como a tínhamos antes, mas de construir novas regras de funcionamento individual e coletivo.

Essas regras não podem pôr em causa o legado do Estado de Direito democrático que construímos, nem os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República.

Temos de estar atentos à possibilidade de surgirem ou se agravarem novas discriminações no período pós-estado de emergência, que como todas as discriminações procurarão justificar-se com argumentos, que é preciso desconstruir.

Sem ignorar outras ameaças, quero chamar a atenção para os riscos de discriminações dos idosos, grupo até agora não delimitado, mas que está a ser construído com os decretos do estado de exceção como abrangendo as pessoas com mais de setenta anos, sujeitas a um dever especial de proteção. Digo que se trata de uma construção, porque os idosos tanto poderiam ser delimitados a partir dos oitenta anos como dos sessenta e cinco, ou menos.

Não vou discutir até que ponto esse dever especial de proteção e as limitações assimétricas de deslocação que comporta, em nome do dever de recolhimento domiciliário, são inconstitucionalidades ostensivas, como defendeu o Prof. Jorge Reis Novais (TSF, 17 de abril de 2020, 11h04).

Durante o estado de emergência esta questão pode ser legitimamente questionada, mas o que é importante para os idosos será a existência ou não de limitações de circulação no período pós-estado de emergência, com o pretexto da sua especial proteção por não estarmos ainda num período pós-covid-19.

É justo reconhecer, ao seguir a política de aplanamento da curva de forma coerente, que o Governo permitiu que o Serviço Nacional de Saúde não implodisse e evitou que os doentes fossem discriminados no acesso a ventiladores em razão da idade ou de certas patologias. Temos de saudar e apoiar esta política que contrasta frontalmente com a barbárie na prática de deixar morrer os idosos em alguns países ou os discursos anti-idosos à Bolsonaro.

A esperança de vida vinha a aumentar entre nós antes desta pandemia, bem como o número de idosos que ultrapassam os cem anos.

Cada vez mais idosos não se limitam a sobreviver, mas contribuem de forma ativa desde logo pelo prosseguimento voluntário do seu trabalho, para construir um futuro melhor para todos, quer a nível nacional, quer internacional, em todos os domínios da vida social, cultural e económica. Não esqueçamos que Manuel de Oliveira, José Saramago e muitos outros deram contributos fundamentais para a cultura portuguesa depois dos setenta anos, nem figuras de referência a nível internacional como o Papa Francisco, António Guterres ou, noutro plano, Bernie Sanders ou a recém-falecida Maria de Sousa.

Os cidadãos idosos não constituem um grupo homogéneo, a única coisa que tem inequivocamente de comum é a idade cronológica. Não são iguais no que se refere ao trabalho ou à reforma, às aspirações, à situação de saúde, física ou psicológica, às possibilidades de mobilidade. Nem se pode presumir que renunciarão aos sonhos, às emoções e aos afetos, ou a uma cidadania ativa.

Os idosos não deverão aceitar, apenas por razões de idade, serem sujeitos a limitações assimétricas de deslocação, nem renunciarem ao exercício da sua cidadania ativa, nomeadamente, os que trabalham, os que exercem funções eletivas a qualquer nível autárquico, nos partidos políticos, ou no quadro das mais variadas associações, ou instituições sociais, como os sindicatos ou associações patronais. Não será aceitável haver apenas uma exceção de deslocação limitada aos titulares de cargos políticos, magistrados ou líderes dos parceiros sociais.

Falemos claro: será totalmente inconstitucional limitar as deslocações e os contactos com os idosos pelo menos até ao fim do ano, como defendeu Ursula von der Leyen.

Não se invoque para o justificar que os idosos estão a morrer em grande número, o que é verdade, em Portugal, em Espanha, na Itália ou na Suécia, porque na sua maioria são os que estão confinados em lares que agigantam esses números. O que essa realidade traduz é o fracasso dos Estados em garantirem que os idosos que se encontram nos lares aí permaneçam em segurança.

Os idosos têm o dever de cumprir as orientações de proteção e devem ser zelosos a fazê-lo, devem sujeitar-se aos testes sempre que as autoridades de saúde pública o entendam necessário, mas não renunciaram à vida e ao risco que isso implica e dispensam ser tratados com um paternalismo que os menoriza.

Advogado, Deputado Municipal na Assembleia Municipal de Lisboa

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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