25 de Abril sempre, covid-19 nunca mais

Todos sabemos que não serão 130 apenas. Haverá um exército de assessores, assistentes, técnicos, seguranças, motoristas, funcionários e colaboradores de que depende a Assembleia da República para que tudo funcione. Mas nem sequer é este o problema. O problema é o exemplo, o mau exemplo que a Assembleia da República dá ao país.

Esta semana assinala-se o 46.º aniversário do 25 de Abril. Nunca como antes nos fez tanto sentido celebrar a liberdade, ainda mais em tempo de confinamento obrigatório, mas manda o bom senso e a decência que o façamos, em tempos extraordinários, de uma forma solene, como merece, mas responsável.

O país continua o combate desigual a um inimigo invisível que não dá tréguas. Na linha da frente há um exército de bons soldados em tempos de paz, os que não podem ficar em casa, para que os outros não integrem as listas dos infectados. São médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares de saúde, bombeiros, polícias, militares, autarcas, funcionários das autarquias, dos supermercados e dos centros de distribuição alimentar, dos centros de apoio domiciliário, de distribuição de correio e de produtos e serviços, e tantos outros profissionais que dia após dia arriscam tudo de si, para o bem de todos nós.

A todos os outros foi pedido que ficassem em casa. Foi depois reforçado e esse pedido tornou-se recomendação oficial. Mas, à medida que nos íamos debatendo com o vírus, mais certezas fomos ganhando de que é um inimigo traiçoeiro, e a recomendação de confinamento tornou-se obrigatoriedade.

O país inteiro aceitou as determinações das autoridades, acatou as medidas impostas, e a grande maioria cumpriu. Os poucos que não cumpriram provocaram uma onda de revolta generalizada. Não é possível que haja gente irresponsável que nos coloque a todos em risco por nada – gritava-se, com razão. A norma tornou-se normal. A oposição tornou-se colaboração. Havia, pela primeira vez em democracia, uma unidade nacional e natural. O país mobilizou-se e uniu-se contra o inimigo comum.

E digo havia, porque quando menos se esperava, quando todos nos resignávamos ao novo normal, com todas as atividades gregárias e sociais em suspenso, até que passe o perigo, inclusive as mais importantes de todas, as cerimónias de homenagem e despedida dos que nos são mais próximos e que sucumbiram a esta pandemia, fomos todos surpreendidos pelo anúncio de que a Assembleia da República irá celebrar o 25 de Abril também este ano.

O país caiu de novo numa discussão estéril e perfeitamente escusada. Voltaram as barricadas entre os que defendem o 25 de Abril como se a liberdade fosse uma conquista exclusiva, e os que se indignaram, com razão, contra a insistência em renovar a encenação anual, como se não pudéssemos seguir o bom exemplo de tantos e tantos países. E contra os indignados, seguiu-se logo o rótulo do costume – fascistas!

Nem a ameaça de um vírus mortal tolhe esta miopia ideológica. Não é uma questão doutrinária que está a indignar, com razão, repito, muitos cidadãos à direita e à esquerda. É uma questão de decência, de bom senso, de responsabilidade política e social. Não se pode proibir um funeral de um pai, uma mãe, um filho, um avô que sucumbiu ao vírus de má memória, e nem uma flor se poder depositar em sua memória, porque nem sequer há floristas, para depois a Assembleia da República, a mesma onde as restrições à liberdade dos cidadãos são legitimamente aprovadas, fazer tábua rasa dos seus decretos e imposições, e decidir engalanar o hemiciclo e realizar uma cerimónia com 130 personalidades, dizem.

Todos sabemos que não serão 130 apenas. Haverá um exército de assessores, assistentes, técnicos, seguranças, motoristas, funcionários e colaboradores de que depende a Assembleia da República para que tudo funcione. Mas nem sequer é este o problema. O problema é o exemplo, o mau exemplo que a Assembleia da República dá ao país. Não pode proibir um ajuntamento para depois apresentar outro aos cidadãos. A liberdade não pode tornar-se libertinagem.

Bastava uma cerimónia solene com o senhor Presidente da República, mesmo que fosse por videoconferência. O país compreenderia. Ou mesmo sendo por via representativa na Assembleia, o presidente da Assembleia da República, o primeiro ministro, o Presidente da República e um representante de cada partido, numa cerimónia solene mas à medida dos tempos que vivemos. Em tempo de crise, o exemplo das autoridades é determinante para a mobilização dos cidadãos.

Triste exemplo. Triste e desrespeitador de todos aqueles que desde o inicio desta pandemia combatem na linha da frente de forma abnegada, de todos aqueles que, e bem, se encontram confinados, avós sem ver netos e vice versa, filhos sem verem os pais e vice versa, doentes internados em hospitais e lares privados das visitas das suas famílias. Um mau exemplo que se assemelha a uma birra. 

Com total e absoluto respeito pelas motivações dos que defendem esta celebração, mas alguém, porventura, se esquece ou esquecerá do 25 de Abril? Mas a democracia está ameaçada? Seremos nós, o povo, uma cambada de inúteis desprovidos de discernimento que, à falta das comemorações do 25 de Abril, julgará que a liberdade está suspensa ou foi contaminada pelo covid-19, tendo-se evaporado?

Todo o espectro politico, tirando um ou outro exemplo, em face desta pandemia, tem dado provas inequívocas de uma maturidade politica inexcedível, de consenso, de combate coeso quanto às medidas e decisões. Todos foram chamados ao sacrifício de abdicarem “temporariamente” da sua liberdade e disseram presente. E o país e os portugueses continuam a dizer presente, sem medo. Porque não é a liberdade ou a democracia que estão em risco, mas sim a vida. Existirá maior prova de Abril perante uma nação que a união de todos perante um inimigo comum? 

Este ano não haverá descida da Avenida da Liberdade. E bem! 

E não, não sou fascista. Sou consciente, devemos ser conscientes e apelar à consciência e discernimento de todos.

Porque, como disse o senhor Presidente, “é preciso em abril ganhar maio”. Eu diria mais, é preciso em abril ganhar bom senso e assinalar a data com dignidade mas responsabilidade, porque a teimosia pode fazer-nos pagar muito caro e adiar por muito tempo a liberdade que já todos ansiamos. 

Estou certa de que todos esperamos rapidamente poder gritar “25 de Abril sempre, covid nunca mais”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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