Afinal havia o Outro

O entranhar-se do medo revira as entranhas, tolda a razão, turva a emoção, entorpece a acção. O medo do vírus virou-nos, do avesso, primeiro.

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Andreia Gomes Carvalho

O vírus virou-nos. Do avesso, primeiro. Para dentro, crê-se. Para fora, sabe-se.

Como tempestade que se antecipa, distante, e se deseja não chegue. E antes que fosse dito, era claro que chegaria. Dela ouvia-se falar do seu devastador e nefasto poder.

A palavra cria realidade e as que mais se ouviam eram infecção, doença, morte, crise, quarentena, confinamento, isolamento. E números, muitos (dúbios) números. Faz-se real o risco de ser infectado, real o de perder o emprego, real o de não pagar salários, real o de cancelar projectos, real o de não fruir do desejado, do assumido como garantido, real o de adoecer, real o de morrer. Real o risco de não ser capaz de (se) suplantar.

O entranhar-se do medo revira as entranhas, tolda a razão, turva a emoção, entorpece a acção. O medo do vírus virou-nos, do avesso, primeiro. Para dentro, crê-se. Na procura da garantia da satisfação das mais primárias necessidades de sobrevivência e segurança, as de Maslow. Para dentro de supermercados, farmácias, hospitais, centros de saúde, (mãos) dentro de luvas, dentro de casas. Antes que nos fosse dito. Para dentro de nós e do nosso medo. Crê-se.

O risco é universal como o medo. Ambos nos fazem pessoas. Como, ante eles, a resiliência e a estoicidade. Sabe-se.

A construção relacional do significado evidencia o carácter falacioso do desenvolvimento individual. A história de Mim exige o Outro. Este Outro, história nossa, a quem se quer bem e com quem não se está (por tanto se querer bem não se está). Com quem se quer festejar o aniversário e não se visita. A quem se quer dar um abraço e se vê da janela. Com quem se partilharia uma Páscoa que se reinventa.

O Outro que do seu Outro se despede, no fim da sua história. O incógnito Outro, desconhecido que tem avós que tampouco conheço, filhos que não sei, tios com quem não me cruzei, mulher a fazer quimioterapia, padrinho hemodiálise, irmã médica e genro enfermeiro. O vírus virou-nos para este Outro. O nosso Outro e de outrém o Outro. De formas mil. O Outro que precisa de acompanhamento psicológico e para quem estudantes propõem a criação de respostas online. O Outro que precisa de viseiras e para quem um grupo de amigos as imprime em 3D. O Outro que precisa de víveres e a quem se vai às compras. O Outro que presta cuidados a idosos e a quem se auxilia. O Outro a quem não chega equipamento médico e para quem se mobiliza angariação e apelo sustentado de equitativa distribuição. O Outro, em situação de particular vulnerabilidade e para quem se cria suporte.

O Outro, que existe num contexto sociocultural específico onde, mesmo finda a tempestade, arco-íris e as palavras “Vamos ficar todos bem” fazem pouco sentido. Não vamos ficar todos bem. Vamos ficar todos diferentes. E o Outro, que vive em risco real, sente medo real, que resiliente e estoicamente (se) suplanta, carecerá mais ainda que o vírus nos vire. Para fora. No final, tem de haver o Outro. Sabe-se.

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