O livro e os inimigos cruéis

O que é assunto de todos é percebermos que, tanto nesta situação actual, dramática, como em “condições normais”, não existe uma política educativa favorável à criação de leitores e à circulação do livro – pelo contrário, como sabemos, existe um Ministério da Educação infectado pelo pior dos vírus, que é a mistura de ignorância, indiferença e mediocridade.

Nesta segunda-feira reabriram as livrarias em Roma e na região do Lácio. Não houve corrida nem enchente, não houve festejos nem um carnaval de autoridades presentes – mas reabriram e, como dizia um jornal italiano, tratava-se da “gioia dei commercianti”, a alegria dos comerciantes. A notícia enche-nos de júbilo também, aos leitores e a todos “os que amam o livro” e pensam que um mundo sem livros e sem livrarias fica mais pobre e tem menos sentido para qualquer tipo de futuro.

Há sinais de que as livrarias portuguesas podem abrir durante o mês de Junho, o que, a verificar-se, seria o reinício de actividade para o sector do livro. Menciono “o sector do livro” mas imagino que a maior parte dos responsáveis políticos e dos que tratam da nossa economia desconhecem o que isso significa, porque os livros, por muito que falem, falam em silêncio e não realizam espectáculos nem, com poucas excepções, andam de mão dada em campanhas eleitorais, com guizos ao pescoço. Só assim se compreende que nenhum desses responsáveis tenha, até agora, sido sensível à situação dramática que se vive nesta área, grande parte dela em lay-off ou em condições ainda mais severas, com um corte brutal nos rendimentos, totalmente confinada e sem esperar qualquer apoio do Estado.

Acontece que, sem livrarias abertas, está paralisado o chamado “mundo do livro”: editores, livreiros, revisores e tradutores, artistas gráficos, fotógrafos, indústria gráfica e do papel, distribuidores e redes de transportes ou logística – poderíamos aqui aumentar a lista de profissionais, que é enorme.

Evidentemente que as livrarias não podem constituir excepção ao “regime geral de confinamento” em vigor durante o estado de emergência, e depois dele, mas mencioná-las é fundamental para mostrar como é necessário prestar atenção à fragilidade deste ecossistema que nunca reclamou favores do Estado (e nunca os teve), que encarou as crises com independência e valentia, que se reinventou quando era necessário, que procurou soluções criativas para prestar o seu serviço – e criar riqueza. Lamento não mencionar aqui a felicidade ou infelicidade que vêm nos livros, o conforto e a perturbação que eles transportam, o sopro de fragilidade e de vaidade que garantem, os nomes dos autores que nos acompanham desde sempre, as histórias que nos comoveram e enfureceram, o conhecimento e a sabedoria que transmitem, as revoluções que geram, os tumultos que provocam, a inquietação e a melancolia que proporcionam, a solidão que transformam ou aumentam – tudo isso é com cada um de nós, leitores, e cada leitor sabe de si.

O que é assunto de todos é percebermos que, tanto nesta situação actual, dramática, como em “condições normais”, não existe uma política educativa favorável à criação de leitores e à circulação do livro – pelo contrário, como sabemos, existe um Ministério da Educação infectado pelo pior dos vírus, que é a mistura de ignorância, indiferença e mediocridade. Também sabemos como as bibliotecas municipais foram destinadas ao abandono e à penúria (violando as leis), como os profissionais do livro raramente são escutados quando se trata de promover a leitura e a cultura em detrimento de pareceres totalmente desligados da realidade. Ou como, “de cima” (aquilo que os comentadores e oportunistas políticos também designam por “elites”), nunca vem um exemplo capaz de levar mais pessoas a ler, a querer ler ou a sentirem que a leitura é um importante instrumento de conhecimento e de diálogo com o passado e com o futuro, e também de elevação individual e participação na vida comunitária.

Se o sistema de valores culturais privilegia o espectáculo, o ‘lifetsyle’, os gatinhos nas redes sociais, a velocidade, a superficialidade, os erros ortográficos – esperava-se que o sistema educativo público tomasse entre mãos essa tarefa nobre e urgente de melhorar e ampliar o acesso à leitura, de permitir que as bibliotecas públicas adquirissem, gerissem e aumentassem os seus fundos bibliográficos (e não no sentido de criar “bibliotecas escolares” que, com poucas excepções, separam os estudantes da comunidade e da notável rede de bibliotecas municipais, que – já agora – corre o risco de colapsar), de exigir que a escola promovesse a leitura dos clássicos (porque são eles o grande instrumento para a “inclusividade”) e de espaços de partilha de livros. Se esta situação se mantiver – falo de incúria e indiferença, reunidas –, é provável que, dentro de algum tempo, “o livro” seja mesmo essa raridade atrevida, como queriam os autores mais enclausurados ou os elitistas mais avaros. Mas, repito, por incúria e indiferença.

Apesar de tudo, vale a pena também repetir que o sector editorial (e todas as redes profissionais e da indústria, que ele convoca) tem sabido reinventar-se a cada crise – e tem saído de cada uma delas com mais energia, experiência, conhecimento e autodefesas. Tem enfrentado guerras desiguais e toda a concorrência dos meios de “entretenimento” que o Estado, aliás, tem apoiado com entusiasmo. Mas não pode, neste momento, defrontar dois inimigos igualmente cruéis: uma crise grave de toda a economia e a indiferença persistente dos poderes públicos a quem cabe apoiar o sector cultural, e que – à vista de todos – é incapaz de tomar uma única medida de apoio à edição e às livrarias, aos autores e às empresas da edição. Nem que seja, por exemplo, financiar verdadeiramente as bibliotecas para que possam comprar livros, apoiar as livrarias nas suas delicadas negociações em matéria de arrendamento comercial, ou incentivar a entrada de livros nas escolas.

Quando os responsáveis políticos falam, falam de tudo – excepto de livros, e compreende-se que até seja melhor. Da “arte pública” às contratações de espectáculos, eles sabem muito bem que o livro não entra no seu “rally-paper cultural”. 

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