A criminosa paralisação do sistema de justiça

O país arrisca que estas férias judiciais ad hoc se venham a unir às férias judiciais de Verão, o que deixará Portugal sem sistema de justiça até Setembro. Os atrasos serão enormes e demorarão meses ou anos a recuperar.

Nos primeiros dias da avalanche legislativa desencadeada na sequência da chegada da covid-19 a Portugal, o Governo esqueceu-se dos tribunais e do sector da justiça. O Decreto-Lei 10-A/2020, de 13 de Março, era omisso a respeito dos prazos judiciais, o que motivou protestos por parte dos operadores judiciários, como os advogados, que não estavam em condições de respeitar os prazos processuais nos seus processos.

Alegou-se — e com razão — não ser possível reunir com clientes, visitar presos, obter documentos. Eu acrescentaria uma razão particular: as minhas filhas, de 3 e 8 anos, confinadas em casa, dificilmente proporcionam a tranquilidade que muito do meu trabalho requer.

Em 19 de Março, com o país completamente paralisado, a Lei 1-A/2020 veio finalmente regular a questão dos prazos judiciais em curso, determinando uma suspensão total e absoluta, inclusive nos processos urgentes, só contemplando um leque muito limitado de excepções.

Além do mais, o texto legal é ambíguo e tem suscitado dificuldades interpretativas. Se se legisla tão mal em tempo de paz, o que poderíamos esperar em tempo de “guerra”?

A suspensão de prazos decretada implica a não realização das diligências habitualmente levadas a cabo nos tribunais com a presença física dos intervenientes, como julgamentos, conferências de pais e tentativas de conciliação. É uma medida compreensível, tendo em conta o isolamento social a que estamos sujeitos.

Sucede, porém, que o desenrolar de um processo judicial é muito mais do que o julgamento ou a sentença que lhe põe termo. Há um trabalho prévio de advogados, juízes e outros intervenientes, que precede a decisão final e muitas vezes prossegue após esta. Este trabalho, invisível para o cidadão, representa a fatia de leão das tarefas dos operadores judiciários, nomeadamente juízes, advogados, peritos e funcionários.

A Lei 1-A/2020 veio causar a paralisação de todo o sistema, já que as partes e os seus advogados deixaram de estar obrigadas a cumprir os prazos que a lei prevê para a prática de cada acto.

Esta suspensão de prazos é incompreensível, irrazoável e injustificada. E já está a causar gravíssimos atrasos na marcha dos processos em curso nos tribunais e dos que venham a ser instaurados no futuro.

Não se compreende que as partes, por intermédio dos seus advogados, tenham ficado dispensadas de praticar todos aqueles actos indispensáveis ao desenrolar dos processos — como o envio de petições, contestações, oposições, requerimentos e documentos — quando a esmagadora maioria dos processos judiciais estão desmaterializados e o envio da documentação é realizada por via eletrónica.

São poucos os casos em que se tem de recorrer à via postal, sendo que os CTT — ao contrário dos tribunais — estão em pleno funcionamento.

É certo que os advogados estão agora sujeitos a constrangimentos que dificultam ou podem impossibilitar o seu trabalho. Mas para os casos de impossibilidade de cumprimento de prazos, que serão uma escassa minoria, existe a figura do “justo impedimento” que admite a prática do acto em momento posterior. As reuniões podem ser substituídas por chamadas telefónicas ou videochamadas e a documentação remetida ao processo em data ulterior.

A pandemia deveria ter determinado o alargamento dos prazos legais — duplicando-os, por exemplo — e a ampliação da figura do “justo impedimento”, mas jamais a total paralisia processual.

Arriscamos que estas férias judicias ad hoc se venham a unir às férias judiciais de Verão, o que deixará o país sem sistema de justiça até Setembro. Os atrasos serão enormes e demorarão meses ou anos a recuperar. Há que repor o sistema a funcionar, já!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção