O Estado de Direito e a metamorfose das crenças

É preciso que o cidadão esteja atento, e ensinado a distinguir onde acaba a crença legítima e começa o charlatanismo e até a política totalitária sob capa de religião ou ciência.

Tempos de peste são convite ao recrudescimento de fanatismos e superstições, que podem constituir ameaças ao ar desnublado e pluralista do Estado de Direito.

Não é de agora, mas pode agravar-se. Com a falência da civilização materialista (incontrovertível no imperativo da solidariedade imposto pela pandemia), mil e um movimentos “alternativos”, “espirituais”, “esotéricos”, “místicos”, etc., com maior ou menor enquadramento e implicações políticas (nem que seja apenas o absentismo), parecem ver verificadas as suas teses e profecias, e continuam empolgando milhões de adeptos fervorosos. Pelo mundo fora.

Pelo menos alguns desses movimentos, grupos, círculos, seitas, e gurus, têm verdadeiro poder (por vezes, totalitário) sobre os seus membros e seguidores, que com frequência os seguem acriticamente. Sempre ocorreu. Lembremo-nos de heresias e milenarismos. Mas agora, é onda globalizada, servida por poderosos meios, como a Internet. Alguns líderes podem mesmo ser os psicopatas de que explicitamente fala a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva em Mentes Perigosas.

Teme-se uma camuflagem de poderosas máquinas de fazer dinheiro (e de obter poder) que se façam passar por centros de profunda espiritualidade ou sofisticada técnica bio-psico-social. Se pensarmos que, em alguns países, as entidades religiosas (que podem ser interpretadas como tais latissimo sensu) parece terem isenções fiscais e de obrigações militares, compreende-se mais a proliferação. É esclarecedor atentar nos nomes bizarros de denominações que vão aparecendo, e mesmo o anúncio em jornal de “trespasse” de seita com templo, indicando o valor potencial do “negócio”.

A associação de certos grupos religiosos (mediáticos e exaltados) a propostas políticas autoritárias, tendencialmente teocráticas, não tranquiliza os democratas nem as religiões “tradicionais”, plenamente integradas no pluralismo e na Democracia. Obviamente, estas novas realidades em nada tocam, na sua essência, os altos valores espirituais e religiosos. Confundem alguns e ludibriam outros.

Certos grupos não se apresentam com marca religiosa, mas científica. Aos seus líderes seria importante que se pedissem os diplomas por Universidades credíveis do sistema de ensino institucional nos vários países, e não só marketing. Presumindo-se, desde logo, que não se pode ser “Prof.”, “Mestre” ou “Dr.” sem diploma válido, e que as regras para dar diplomas são definidas legalmente. Infelizmente, também se podem obter hoje diplomas (até títulos de nobreza!) na Internet, a troco de dinheiro. Não é obviamente tal tipo de diplomas que se exige. Será que nos habituamos a essa usurpação de títulos por tanto “mágico”, ilusionista, ou prestidigitador se dizer “Professor”?

É interessante como essas novas “ideologias” oscilam na inserção ora no oculto, sagrado, etc., ora no científico. Mas também pode haver híbridos. A “oferta” é imensa, e não se tem insistido o suficiente nos perigos que alguns desses fenómenos constituem para a bolsa, sanidade mental e liberdade dos cidadãos. A relação de alguns deles com a deformação sistemática da realidade científica, ou mesmo a sua negação, é algo preocupante. Há gurus e grupos – naturalmente além dos satanistas, que pregam o bem do Mal (v. Carlo Climati, Os Jovens e o Esoterismo) –, que defendem que a Terra é plana, que a covid-19 é conspiração política (parece que “comunista”), que as vacinas são nocivas, que alguns povos são imunes aos contágios (porque superiores), etc. Outros pretendem que planam sobre as águas (todos os que fizeram o teste morreram afogados), que possuem e que conseguem transmitir aos discípulos técnicas salvíficas, no Além e no Aquém...  

A República deve ser pluralista, convivente (tolerante é pouco), e embora até Jesus tenha expulsado os vendilhões do Templo (Mc.12, 15-19; Mt. 21, 12-17, Lc. 19, 45-48, Jo. 2, 13-16), os Estados têm tido, em geral, uma sábia abstenção. Mas, no limite, se o equilíbrio social e os direitos das Pessoas forem postos em causa por grupos que assumam a violência (simbólica, ou até armada e militarizada)?

Claro que há grupos e grupos. Podemos, em certos casos, estar perante colisão de direitos: liberdade religiosa, educativa, de associação e expressão vs. dignidade da Pessoa, direito geral de personalidade, liberdade de pensamento, direitos de membros de associações, etc. Até direitos do consumidor. É preciso que o cidadão esteja atento, e ensinado a distinguir onde acaba a crença legítima e começa o charlatanismo e até a política totalitária sob capa de religião ou ciência (e, em certos casos, pode haver crime). Seria forma de autodefesa da Democracia e uma arma da cidadania responsável.

Há porém o perigo de se confundirem instituições sérias, com pergaminhos e provas dadas (retidão de costumes, honesto estudo, até contributo para a liberdade política ou para a solidariedade social) com seitas e personalidades fanatizantes (que podem ostentar qualquer capa, v.g. “associações”, “empresas”, ONG), dominadas por psicopatas predadores. É preciso apartar o trigo do joio. Umberto Eco refletiu muito bem sobre estas questões, e também chama a atenção para o perigo da repetição de “bodes expiatórios”, os “suspeitos do costume”... As Vinte Lições do Século XX, de Thimothy Snyder, são também, em geral, um programa a seguir.

Em tudo é preciso prudência e o seu discernimento. Em Portugal, quiçá proverbiais “brandos costumes” não nos têm, por agora, levado a graves extremos –parece que a onda ainda não chegou cá em força. Mas, como com o vírus, como com todos os perigos, não será melhor “prevenir do que remediar”? Desde logo, começando a pensar nestes problemas. E aprendendo com a experiência dos outros, filtrada pelo nosso equilibrado “bom senso”. Sempre à luz do grande contrato social que firmamos: a Constituição da República Portuguesa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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