A redescoberta do coletivo – implicações para o pós-pandemia

Reconhecer a dimensão coletiva implica, de facto, garantir a provisão pública de bens comuns e de direitos sociais. O vírus veio evidenciar que há muito a economia deixou de estar “ao serviço da vida” e da sociedade.

A sociedade existe

No início de Abril, Boris Johnson afirmou, atrevidamente, que afinal “existe uma sociedade”. Em 1987, Margaret Thatcher afirmava exatamente o contrário, legitimando assim a era de individualismo e de liberalização desenfreada que estava a promover. A presente pandemia veio, portanto, obrigar todos os políticos e todos os economistas a tomar consciência da existência da dimensão coletiva das nossas vidas e das nossas economias, dimensão que os países europeus souberam avalizar quando instituíram o Estado social no século 20. Reconhecer a dimensão coletiva implica, de facto, garantir a provisão pública de bens comuns e de direitos sociais, i.e., o direito à saúde, à educação e ao trabalho. Bens comuns que o neoliberalismo procurou privatizar e instrumentalizar ao serviço do capital financeiro. O vírus veio evidenciar que há muito a economia deixou de estar “ao serviço da vida” e da sociedade.

O pós-pandemia está a ser preparado injetando milhões de euros na economia, mas o sub-investimento nos bens comuns, e a exclusão de trabalhadores da proteção social por não terem uma relação contratual convencional (uberizados e outros), não são explicitamente denunciados. Fala-se de revalorizar os salários na saúde e nos serviços sociais mas sem que essa revalorização seja integrada numa redefinição sistémica da noção e da provisão de serviço público. Assim, os trabalhadores do “cuidado” – enfermeiras, trabalhadores dos lares e dos supermercados – terão de se contentar com aplausos enquanto dirigentes e acionistas continuarão a receber dividendos.

Está-se a (re)descobrir que o trabalho tem sentido, e que as pessoas não trabalham só pelo dinheiro, mas já há quem queira aproveitar a experiência destas semanas para alargar a esfera do teletrabalho, sem terem tomado consciência de que um trabalho do qual desaparecem as interações sociais é de uma pobreza humana desoladora. Reconhecer que a sociedade existe significa ter consciência que, sem os outros, as nossas vidas e o nosso trabalho deixam de ter sentido. Foi esse o maior e trágico sucesso do neoliberalismo: glorificar o individualismo, levando as pessoas a focar-se em si próprias e a descurar os outros.

A solidariedade

Apela-se à solidariedade no seio da União Europeia. Esta noção remete para dois significados distintos. Designa, por um lado, uma situação factual – a existência de dependência mútua entre membros de um grupo; e, por outro lado, uma prescrição moral – o dever de solidariedade que requer que os membros de um grupo ajam de modo a manter ou reforçar essa situação de interdependência. Este dever figura no preâmbulo da Constituição francesa de 1946: “A Nação proclama a solidariedade e a igualdade de todos os franceses perante os encargos que resultam das calamidades nacionais.” A solidariedade contrasta assim com a noção de risco moral, presente nos discursos de certos países europeus, que traduz a convicção de que alguns Estados-membros vão comportar-se de forma amoral – usar os fundos europeus indevidamente. Por isso recusam ser solidários.

No entanto, quando se tratou de salvar os bancos, em 2008, o sistema financeiro obteve de facto a solidariedade de todos os Estados e beneficiou de uma espécie de contrato com a coletividade, numa solidariedade passiva, organizada pelos poderes públicos. Ora, a solidariedade que está agora em causa obriga precisamente a romper com os interesses do sistema financeiro, com um regime de crescimento económico baseado no endividamento porque só este garante a continuação da hegemonia do sistema financeiro. Com efeito, o que a pandemia veio pôr a nu foi a destruição dos bens comuns (sistema de saúde, condições dos lares de idosos, rede de luta contra a pobreza) em muitos países ocidentais. E o facto de que a vida só foi possível durante a crise/confinamento graças à solidariedade dos trabalhadores do “cuidado”.

Haverá outras pandemias, dizem os especialistas. Queremos ou não transitar para um regime de crescimento que permita restaurar a provisão pública dos bens comuns, bens considerados dispensáveis por quem não acredita que a sociedade, a dimensão coletiva da vida humana, existe? Claro que o que está em causa é cortar ou não com o neoliberalismo, com uma sociedade regulada prioritariamente pelos mercados, os quais ignoram os bens comuns para privilegiar a hiperconcentração do capital e a extração de renda. Cortar com o neoliberalismo significa voltar a conferir aos poderes públicos uma autoridade firme. A questão essencial aqui é a do nível ao qual é possível organizar uma solidariedade ativa.

O coletivo e a autoridade

Reconhece-se ou não ao Estado nacional a função de definir o que é o bem público, i.e. os bens comuns, e a legitimidade para tomar as medidas necessárias para o realizar? É precisamente essa função e essa legitimidade que o neoliberalismo nega – por isso dispararam as desigualdades e os sentimentos de injustiça e abandono que estão a alimentar os movimentos populistas e a ânsia por regimes autoritários. Reforçar a provisão pública dos bens comuns, realizar a transição ecológica, elaborar e planear projetos de desenvolvimento a longo prazo, requer legitimar uma ação do Estado muito mais intervencionista do que foi nas últimas quatro décadas. Mas é esse o preço de um coletivo que se assume: o de aceitar uma autoridade legitimada por processos democráticos.

Dado o poder escandaloso entretanto granjeado por conglomerados económicos e financeiros, é difícil ser otimista quanto a uma mudança de fundo do sistema económico. Várias são as forças que tentarão fazer com que tudo volte ao regime de crescimento anterior à pandemia, como ilustrado, por exemplo, pelo voltar em força das agências de rating nos media. São necessárias iniciativas políticas militantes que consigam penetrar no interior dos dispositivos através dos quais o sistema vai tentar reproduzir-se, para os perturbar ou tentar instalar aí contrapoderes.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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