Mães-mãe

Este texto, escrito há 365 dias como elogio fúnebre e acção de graças, é dedicado a todas as mães que morrem nesta pandemia e a todos os que as perdem sem poderem delas despedir-se, no dia em que se cumpre precisamente um ano sobre a morte de minha mãe, vítima de “gripe A”.

Este texto, escrito há 365 dias como elogio fúnebre e acção de graças, é dedicado a todas as mães que morrem nesta pandemia e a todos os que as perdem sem poderem delas despedir-se, no dia em que se cumpre precisamente um ano sobre a morte de minha mãe, vítima de “gripe A”.

Levantei-me esta madrugada, chovia e granizava violentamente.
Levantei-me na alvorada para escrever a acção de graças pela vida e pela morte da nossa mãe, da minha mãe.
Estava uma madrugada pesada, de inverno hostil e duro.
Levantei-me de madrugada, mas falhou-me a inspiração.
Não havia graças, não havia acção.
Não conseguia resumi-la numa lágrima, não lograva defini-la num sorriso, não alcançava captá-la num gemido, não atingia oferecê-la num silêncio.
Nem uma convulsão de choro me valeu, nem o choro da convulsão me envolveu.
Não estava triste, nem alegre, estava inerte.
A chuva pesada e pesante obstruía-me, a alvorada paralisava-me.
O filme, ó Deus, era “tudo sobre a minha mãe”.
A acção de graças parecia nada sobre a nossa mãe.

Queria agradecer e falar sobre a mãe-pessoa, a mãe-mulher, a mãe-esposa,
a mãe-irmã – irmã-de-sete-irmãs –, a mãe-filha-e-nora que, como nora, filha se sentia.
A mãe crente, a mãe-dona de casa, a mãe-amiga-das-amigas.
A mãe conversadora inveterada,
a mãe que conversava, sempre esconjurando a intriga,
a mãe que se comovia com o simples, o humilde, o trivial,
a mãe que – se não se ultrapassasse o cortês – não desprezava nem escarnecia o social.
A mãe imponente-possante-carismática,
a mãe que marcava e nada nem ninguém deixava indiferente,
a mãe que não gerava animosidades nem rivalidades,
a mãe que nasceu para ser avó, avó e matriarca,
a mãe matriarca, que se sentia bem como “prudente-conselheira-universal”.
A mãe – avisada e sensata – que gente íntima e gente longínqua gostava de ouvir,
a mãe que era confidente-juramentada-das-amigas, a mãe que salvava e salvou casamentos, a mãe que guardava os inconfessáveis das suas e dos seus falantes.
A mãe perfeccionista e exigente,
a mãe que ralhava frequentemente,
a mãe que gargalhava, a mãe ridente,
a mãe que afagava depois de levantar a voz,
a mãe que – mesmo reprovando – ia em busca do outro, dela, dele e de nós.

A mãe-senhora, a mãe-de-modos, a mãe-cozinheira-bordadeira, a mãe escrava-da-limpeza-e-serva-do-asseio,
a mãe que só, depois dos 70, se tornou pontual, porque tudo o que até então fazia era mesmo – ela garantia, ela insistia – inadiável e essencial.
A mãe-viajante, levada pela curiosidade insaciável do marido, nosso pai,
a mãe-vaidosa, a mãe-que-uma-joia-não-desdenhava, a mãe-que-gostava-de-bem-vestir, a mãe-que-adorava-ir-às-compras, a mãe-que-em-louças-e-panos-se-viciava,
a mãe-que-não-dispensava-o-cabeleireiro, nem ao menos na véspera da pneumonia fatal,
mas a mãe que não-havia-um-tostão-que-gastasse-mal, a mãe que, em tudo, sabia poupar, a mãe para quem a divisa máxima, tão meridiana e tão salutar, era “sem-fazer-fraca-figura” economizar.
Esta era também a mãe humana, a mãe carnal, padecida,
a mãe-dos-inchaços-e-da-má-circulação, a mãe-cheia-de-mazelas-e-maleitas, a mãe-prenhe-de-queixas, a mãe-que-suportava-dores-físicas-de-todos-os-feitios-e-de-toda-a-cor, a mãe-que-nenhuma-contrariedade-paralisava, a mãe-a-que-não-parava-nenhuma-dor.
A mãe para quem tudo era possível com espírito de sacrifício, a mãe que, arfando e suspirando, ia ao limite dos limites, porque a capacidade de sofrimento era o ânimo do ofício.
A mãe-que-rezava-piamente-e-nunca-foi-beata,
a mãe que preferia o rotundo não e o profundo sim ao nem-ata-nem-desata.
A mãe que execrava beatices, delações, comparações e moralismos,
a mãe que prezava e cultivava virtudes e valores,
a mãe que, sem ceder nunca nos princípios, tolerava e acolhia desamores.
Esta era a mãe-matriarca, terna, meiga, pródiga em beijos e abraços.
A mãe que apaziguava, que cosia, cerzia e tecia os nós e os laços,
a mãe que lembrava que Maria guardou sempre para si, no coração, os prodígios do redentor, a mãe que temia gabar os seus, fossem filhos, netos ou quejandos.

A mãe que dizia: não esqueçais nunca, as mães e os pais dos outros não têm pelos seus nem mais nem menos amor. Amo-vos muito, mas não mais do que as mães dos outros. Nunca penseis, nunca suspeiteis que o vosso amor é superior, que é maior o vosso amor.
Era esse o seu mandamento: não presumais de que amais mais os vossos do que os restantes amam os deles.
O legado maior de nossa mãe é afinal esse: ao contrário do que nos ensinaram, não vale a regra “só se pode amar aqueles e aquilo que se conhece”. Vale antes o princípio: porque os outros amam tanto como nós, mesmo quando não os conhecemos, podemos reconhecer o amor.
Não basta amar o que se conhece, é preciso amar o que se reconhece.
A mãe amou, foi amada, soube amar, soube ser amada e quis reconhecer o amor. Mesmo o amor de que não foi nem poderia nunca ser parte. É essa a radicalidade da condição humana; é essa a novidade do amor cristão.
Obrigado, Deus, por nos teres dado uma mãe tão humana, tão humana nas grandes coisas, tão humana nas pequenas coisas, que soube e quis incluir todos os humanos no seu sopro de vida.

Fecha-se agora o ciclo de lágrimas, sorrisos, gemidos, silêncios.
Digo-o, conhecendo e reconhecendo o amor que a mãe nos ensinou:
Salmo 2, versículo 4: “O que habita nos Céus, sorri.”

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