Cabo Delgado: “Parece que estamos a rever a luta de libertação ao contrário”

Frelimo surge agora como a força da ocupação no lugar dos portugueses e os jovens jihadistas lutam contra a exploração, a corrupção e a arbitrariedade da elite local apoiada por um governo distante.

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Uma imagem dos insurgentes de Cabo Delgado posta a circular nas redes sociais DR

Cabo Delgado é a mais pobre e a mais rica província de Moçambique, abundante em grafite, rubis, gás natural e desigualdade. Onde as grandes multinacionais exploram os recursos e a maioria da população vive na pobreza, sem acesso a educação, cuidados de saúde e empregos. Nem sequer se lhes permite cultivar a terra, expulsos das vastas extensões de território concessionado às empresas.

“Se olhar para o mapa mineiro oficial do Governo pode ver que tudo em Cabo Delgado que não é parque nacional foi entregue para mineração ou exploração. O reassentamento por causa do gás e dos rubis parou porque não há terras agrícolas próximas para onde as pessoas possam ser mudadas”, explica Joseph Hanlon, jornalista e investigador norte-americano que há muitos anos reside em Moçambique.

Afungi, a zona do gás natural perto de Palma, no extremo norte do país, e Montepuez, a área dos melhores rubis do mundo no interior sul de Cabo Delgado, “são hoje mais pobres que há uma década” e “milhares de jovens perderam os seus meios de subsistência”, diz ao PÚBLICO, Hanlon, que dirige o Mozambique News Reports & Clippings​.

“A injustiça piorou com a chegada do oil and gas. A terra é mal paga, as pessoas são retiradas da sua terra sem pagamento justo”, diz Yussuf Adam, professor de História na Universidade Eduardo Mondlane, que há muito estuda a situação em Cabo Delgado.

Os pregadores mais radicais perceberam que o ambiente era propício à fermentação das suas palavras: “Para dizer que a elite da Frelimo estava a apropriar-se da riqueza e que a liderança muçulmana fazia parte dessa elite ligada à Frelimo” e para “apresentar o fundamentalismo islâmico como mais igualitário”, diz Hanlon.

“Toda a violência precisa” de “adoptar um discurso político mais coerente”, afirma o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, professor de Estudos Africanos na Universidade de Basileia. “Infelizmente, esse discurso é escolhido em função de narrativas localmente inteligíveis. Lá em Cabo Delgado o discurso integrista é o mais ‘racional’”, acrescenta.

Passada uma década de promessas do Governo moçambicano de que o gás traria riquezas para Moçambique e para a província, a população continua sem sentir melhorias na sua condição, antes pelo contrário, a corrupção grassa e as Forças de Defesa e Segurança (FDS) trazem mais temor que defesa e segurança.

“Eu sempre digo que quando estou em Moçambique tenho mais medo da polícia e dos militares do que dos bandidos. Há, naturalmente, bons profissionais, mas dum modo geral as FDS conservaram o pior da cultura autoritária que a Frelimo revolucionária implantou”, confessa Elísio Macamo.

“O mais triste e revoltante, porém, é o silêncio do Governo perante as constantes violações dos direitos humanos que membros dessas Forças cometem. Nos últimos tempos têm circulado vídeos horríveis protagonizando essa indisciplina, mas o Presidente, o nosso comandante em chefe, não se sente convidado a vir a público dizer que esses agentes não representam a ética do exército nacional. Ele prefere o silêncio cúmplice”, acrescenta.

O silêncio ou “vazio comunicacional”, como o PÚBLICO ouviu de várias fontes, vem definindo a posição do Presidente Filipe Nyusi e do Governo em relação à insurgência em Cabo Delgado. Desde o primeiro ataque dos jihadistas em Mocímboa da Praia, a 5 de Outubro de 2017, Nyusi nunca falou directamente à população para explicar o que se estava a passar e o que o Executivo e as FDS estavam a fazer para resolver o problema.

Silêncio

Onde o silêncio impera, grassam os rumores, as invenções, os exageros e os limites entre a mentira e a verdade esbatem-se. E as pessoas sentem-se esquecidas na luta contra o grupo armado que já realizou mais de 300 ataques, matou mais de 700 pessoas e já fez, segundo disse recentemente o bispo de Pemba, D. Luiz Fernando Lisboa, em entrevista à Agência Ecclesia, mais de 200 mil deslocados internos.

“Nunca houve um comunicado oficial que abordasse o assunto de forma aberta, nós nunca tivemos por parte do governo nenhuma reacção a dizer ‘olhe, está-se a passar isso em Cabo Delgado...’, houve sempre uma tentativa de ocultar os factos, sempre naquela de que não vamos criar pânico. Até que a situação atingiu esta dimensão e, mesmo agora, não há realmente nenhum comunicado oficial sobre a situação”, refere uma fonte que preferiu o anonimato.

Tirando umas referências avulso, secundárias, em discursos sobre outras coisas, Nyusi tem-se mantido calado sobre uma situação que ele próprio já reconheceu “pode comprometer” a soberania de Moçambique. Qual é a razão para esse silêncio?

“Essa é a grande pergunta que todo o moçambicano decente coloca”, responde Elísio Macamo. “Por uma questão de respeito pelo povo que votou nele e pela Constituição que jurou defender, já devia, por iniciativa própria, ter feito uma comunicação à nação a explicar o que está a acontecer, o que ele está a fazer para proteger a integridade do país e como gostaria que todos os moçambicanos participassem nesse esforço.”

Esse esquecimento, essa sensação de abandono, de silêncio do poder central sobre a situação em Cabo Delgado, o que levou ao nascimento da insurgência. “Como o Estado e o Governo não têm uma estrutura dialogante com a população, esta foi-se revoltando”, diz Yussuf Adam: “A Frelimo não fez, nos últimos 20 anos, uma limpeza, uma purificação de fileiras a sério.”

“Jovens moçambicanos lutam por comida, casa, terra, dignidade e uma sociedade mais justa, contra uma elite de moçambicanos que, acreditam, querem vê-los mortos. O Islão passou a ser a bandeira a seguir; na sua busca, vêem o fundamentalismo islâmico como uma forma de recuperar a dignidade e remediar a sua pobreza”, refere Hanlon.

Como explica Adam, “a presença de grupos islâmicos zangados com o Estado em Cabo Delgado é antiga”. No tempo colonial, houve repressão e muitos foram mantidos presos em Ibo, Mantemue e outras ilhas desde 1964 e até ao 25 de Abril. Depois da independência e até ao fim do período da Frelimo como partido único, marxista-leninista, a relação com as religiões manteve-se muito difícil, especialmente com o islamismo.

E mesmo que desde os anos 1990, aberto o país ao multipartidarismo, a Frelimo tenha feito de tudo para normalizar as relações entre os políticos e os líderes religiosos, a desconfiança da população em relação às elites locais nunca se perdeu, como nunca desapareceu a “vontade de recorrer à violência para se defenderem”, diz Hanlon.

Yussuf Adam, que tem feito muito trabalho de campo na província, afirma que a opinião generalizada dentro das comunidades é que tudo isto é “culpa” do Governo e da Frelimo. “Os culpados são os chefes que roubam e só tratam de si e das suas famílias”, que se associam com os madeireiros e comerciantes que dominam a exportação ilegal de madeira. “Os locais não têm empregos e quem ganha são os maputecos”, o termo depreciativo usado para falar de quem é de Maputo.

“As ligações estreitas entre os negócios globais, legais e ilegais, e do gás à heroína, beneficiam a elite, mas o dinheiro vai passando ao longo da cadeia em contratos e subcontratos e subornos a militares e polícias. No nível mais baixo, alguns funcionários públicos da Frelimo dos escalões inferiores ganham dinheiro suficiente para ser vistos pelos seus vizinhos como estando a viver melhor, mesmo quando continuam a ser relativamente pobres”, diz Hanlon.

Islão mais puro

Da falta de perspectiva de futuro e da revolta, também contra os líderes da comunidade islâmica, que consideram cúmplices da situação difícil em que são obrigados a viver, nasceu um grupo formado por jovens radicais que se afastaram das mesquitas e passaram a reunir-se em espaços improvisados, defendendo um Islão mais puro e mais radical.

Por isso se chamaram Ahlu Sunnah Wal-Jamaa, que significa “adeptos da tradição profética e da congregação”, por contraponto aos imãs de Mocímboa da Praia, que consideravam não estar a seguir a tradição do profeta. E como eram jovens, chamaram-lhes Al-Shabab que é como se diz jovens em árabe, sem que isso significasse uma relação com o grupo islamista Al-Shabab da Somália.

Eram poucos a princípio, mas com condições propícias e um discurso de regaste da dignidade face a um poder que os menospreza, o seu número cresceu. “O recrutamento é fácil para os extremistas”, explica Adam, porque “o Estado cria as condições para que possam recrutar” facilmente. E dá um exemplo recente.

Em Dezembro, as chuvas fortes e a falta de manutenção levaram à queda da ponte sobre o rio Montepuez, construída no tempo colonial, cortando a estrada n.º 380, principal ligação asfaltada entre o Sul e o Norte de Cabo Delgado, e deixando isolados sete distritos: Meluco, Macomia, Muidumbe, Mueda, Nangade, Palma e Mocímboa da Praia.

A construção da nova ponte foi entregue “a dois comerciantes que nada sabem do assunto”, afirma Adam, e toda a gente diz que “eles entregam aos chefes, 30% do orçamento”, ou seja, 30% do valor que o Estado paga pela obra vai para os bolsos de quem adjudicou a sua construção. E se fosse preciso mais um exemplo de como a estrutura do Estado na província está corroída, a queda, a 24 de Março, da ponte metálica provisória que lá foi posta serve de metáfora perfeita.

Os jihadistas usam a corrupção, a arbitrariedade e a repressão do Estado para legitimar a violência, reclamam a pureza das suas convicções contra a podridão das instituições e de quem as dirige – a Frelimo, o partido no poder desde a independência de Moçambique. E se começaram por aterrorizar, atacando a esmo, queimando, matando com requintes de crueldade (decapitações), agora estão mais selectivos nos alvos: atacando edifícios administrativos, bancos, comércios, polícias e militares; evitando a população.

“Estão a seguir as tácticas da Renamo nos anos 1980 e da Frelimo nos anos 1960 – em primeiro atemorizam as pessoas, para mostrar que são poderosos, a seguir tentam conseguir o seu apoio, atacando os seus inimigos”, explica Hanlon. “A ocupação de Mocímboa, Quissanga, Bilibiza mostram um avanço”, diz Adam, e “a tentativa de penetrar no planalto de Mueda é também significativa”.

Luta de libertação

“Hoje parece que estamos a rever a luta de libertação ao contrário. A Frelimo ocupou Mueda, o sitio dos portugueses. E os Al-Shabab ocuparam as aldeias, as baixas, os locais ideias para se esconder”, refere Yussuf Adam.

“A história importa e é uma presença viva em Cabo Delgado. Alberto Chipande disparou o primeiro tiro da luta pela independência a 25 de Setembro de 1964, em Chai, no distrito de Macomia, em Cabo Delgado”, afirma Hanlon, agora “Chai e Macomia estão no centro de uma nova guerra civil”.

Adam e Hanlon até partilham a opinião que o jihadismo, a sharia e a construção de um Estado islâmico em Cabo Delgado é uma ilusão, apenas um discurso coerente que serve como relações públicas da causa. Nas palavras de Adam, “a conotação religiosa ou étnica é uma camada de fumo. Há mwanis, macondes, angonos, etc., envolvidos na insurgência. Há cristãos, católicos, muçulmanos, protestantes e mesmo animistas”, ou seja, está muito para lá de uma questão religiosa, é uma revolta armada contra a injustiça.

“O primeiro tiro da nova guerra civil”, escreve o director do Mozambique Political Process Bulletin, “foi cuidadosamente escolhido”. O 4 de Outubro é feriado, aniversário dos acordos de paz de 1992, que puseram fim à guerra civil entre a Frelimo e a Renamo. Quando o grupo atacou Mocímboa da Praia no dia seguinte, “a maioria dos soldados estava fora, num comício da Frelimo em Pemba”.

O grupo usou o ataque como publicidade para recrutar novos membros, estendendo-se além de Mocímboa para Norte até à Tanzânia e para a sul até a zonas pobres da costa de Nampula. Também engrossaram as suas fileiras muitos dos garimpeiros expulsos com violência pela Montepuez Rubi Mining, a empresa que conseguiu em 2011 a concessão exclusiva da exploração de rubis e que está ligada a altas figuras da Frelimo, nomeadamente o filho do primeiro Presidente do país, Samora Machel Júnior.

“Têm capacidade para mobilizar gente e estão a usar o campo de Ruárua para treinar jovens e crianças”, adianta Yussuf Adam, e já ocupam uma zona libertada que vai de Mucojo, distrito de Macomia, a Mbau, distrito de Mocímboa da Praia, e daqui para o centro, até Magaia, distrito de Muidumbe.

Desde o primeiro ataque até agora, o movimento cresceu, ganhou apoios junto da população, acumulou experiência para melhor atacar os seus alvos e melhor defender-se das acções das FDS. Como explica Hanlon, “os militantes criaram uma rede de inteligência através das famílias, dando-lhes telemóveis e algum dinheiro para que informem sobre o movimento dos soldados”. Os comerciantes informam-nos de quando a tropa recebe o salário, para que sejam apanhados bêbados e eles movimentam-se com fardas iguais às da tropa para melhor passarem despercebidos.

“De acordo com as nossas fontes, o moral das tropas das FDS parece baixo, especialmente nas unidades regulares do exército”, escrevem Saide Habibe, Salvador Forquilha e João Pereira em Radicalização Islâmica no Norte de Moçambique - O Caso de Mocímboa da Praia, publicado pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos. “O cansaço causado pelos ataques armados do grupo dos Al-Shabab, os problemas logísticos e a sensação de que o Governo está a tratar os soldados de maneira injusta, especialmente no que diz respeito à alimentação e tempo de permanência no terreno, estão a causar frustração no seio das FDS. Os soldados estão irritados porque não têm comida suficiente e nem assistência médica.”

Os vários interlocutores com quem o PÚBLICO falou partilham a ideia de que a solução para o problema não é militar, terá de ser mais profunda que isso. “Terá de ser uma intervenção, primeiro, de curto prazo, sim, de caráter militar para eliminar as células, mas tem de ser acompanhada de uma intervenção de longo prazo, estrutural, mais profunda, que resolva os problemas económicos, os problemas de distribuição de riqueza que existem no país”, refere a mesma fonte que preferiu não se identificar, “porque senão corremos o risco de solucionar este problema agora a curto prazo, mas ele pode voltar a qualquer momento”.

“É um projecto de longo prazo que nos convida a revermos a forma como o sistema político funciona”, diz Elísio Macamo. “Precisamos de mais subsidiariedade sem que o Estado abdique da sua responsabilidade de garantir que haja mais justiça social na distribuição da riqueza do país.”

O único problema é a própria Frelimo e o seu “instinto natural” quando se fala de “gestão do poder” que é o de “desconfiar de qualquer exercício de soberania”. E o professor da Universidade de Basileia dá o exemplo da eleição do governador provincial, que deveria ter contribuído para uma maior delegação de poder: “Só que não, criou-se a figura do secretário de Estado nomeado pelo Presidente e esvaziou-se completamente o conteúdo democrático da eleição”.

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