A resposta europeia à crise covid-19 e o setor bancário

A última coisa de que precisamos neste momento seria acrescentar novos fatores de risco a um setor bancário ainda em fase de reestruturação depois da última crise mundial.

Pouco mais de uma década sobe a última grande crise internacional do setor financeiro uma nova crise sistémica veio abater-se sobre nós. Diversamente da anterior, esta crise tem causas exógenas ao funcionamento do sistema económico, de todos conhecidas. De modo trágico, ilustra a realidade de que as crises sistémicas podem ter origens muito diversas e de que os nossos sistemas económicos são altamente vulneráveis a eventos inesperados com elevado potencial de propagação negativa.

No futuro, e idealmente, esta crise deveria também motivar uma reflexão estrutural sobre o modelo de integração internacional das cadeias de produção e sobre a conjugação da mundialização da economia com um défice de regulação internacional (num quadro em que as cadeias de produção se globalizam, mas os padrões, técnicos, sanitários, de defesa dos consumidores e proteção dos trabalhadores e de direitos sociais a que a envolvente de cada elo dessas cadeias se submete são muito diferentes). Mas essa é uma reflexão para o futuro. No presente, há que, como escreveu há alguns dias de forma singularmente clara, Mario Draghi, controlar a crise sanitária e evitar que a inevitável recessão económica decorrente das medidas de confinamento necessárias aquele controlo se transforme numa depressão prolongada. Parece claro e relativamente consensual que tal passará por uma massiva intervenção pública na economia, a qual envolverá, por seu turno, elevados níveis de dívida pública.

O consenso, no entanto, acaba aqui. A partir daí somos confrontados com a realidade da (i) existência de prévios níveis de dívida pública muito diferentes entre os Estados-membros da UE (o que condiciona a sua capacidade de intervenção e o modo como cada Estado encara intervenções europeias e partilhas de riscos) e de (ii) um quadro de integração económica e política ainda incompleta na UE (apesar dos passos dados na última crise financeira, hesitantes e lentos é certo, mas muitas vezes também com oposição estridente de alguns dos que agora reclamam “mais Europa”). Acrescentaríamos um terceiro vértice a este triângulo de realidades a que não podemos escapar (como diria Pessoa, a realidade tem esse pequeno defeito de ‘existir’!). Este corresponde à decisiva importância do setor financeiro (em especial bancário) para ultrapassar a atual crise. Mais uma vez, Mario Draghi recorda-o, no seu recente artigo no Financial Times, assinalando que, num contexto de Estados europeus com estruturas industriais e de serviços muito díspares, a única forma efetiva de reagir à crise será através do que chama, com propriedade, uma plena mobilização dos sistemas financeiros. Tal obrigará a uma combinação de medidas regulatórias e de medidas de apoio financeiro público: No primeiro caso, flexibilizando, com equilíbrio que não comprometa os indicadores financeiros do setor bancário, certas obrigações regulatórias e admitindo moratórias e dilações no pagamento de dívidas por parte de clientes bancários; no segundo caso, mediante sistemas de garantias públicas (a baixo custo ou próximo do zero).

Esse processo já começou, devendo destacar-se as recentes Guidelines da Autoridade Bancária Europeia (EBA), “Moratoria on loan repayments applied in light of the COVID-19 crisis”, que importa concretizar rapidamente em Portugal (e em todos os Estados-membros da UE), mediante padrões comuns de atuação que devem ser compatibilizados com as exigências do direito da concorrência, adaptadas aos tempos de crise, à luz da também recente Declaração Conjunta de European Competition Network (ECN) sobre “aplicação do direito da concorrência durante a crise coronavírus”. O que em nada contribuirá para esse decisivo processo de mobilização do sistema financeiro para a reação à atual crise será a visão demagógica e apriorística de uma quase ‘contribuição social’ que fosse algo punitivamente imposta aos bancos, determinando à partida o sacrifício dos seus resultados. A última coisa de que precisamos neste momento seria acrescentar novos fatores de risco a um setor bancário ainda em fase de reestruturação depois da última crise mundial. O realismo que deve imperar na presente situação – e que se pode conjugar com capacidade de decisão politica, não podendo esta, ao contrário, existir sem o primeiro fator – impõe, também, que a discussão institucional sobre a reação europeia não se cristalize em querelas semânticas e caminhos de sentido único. Nesse sentido, as decisões da recente reunião do Eurogrupo são positivas, mesmo que ainda insuficientes. Apresentam o mérito de identificar caminhos que têm ainda de ser trilhados, em ulteriores decisões políticas, mas que envolvem a conjugação de vários instrumentos, combinando o mecanismo europeu de estabilidade (sem o tipo de condicionalidade que marcou a última crise), o Banco Europeu de Investimento e a Comissão Europeia, no quadro de novos instrumentos a desenvolver. A famosa “mutualização da dívida” não acontecerá num único passo proclamatório, mas poderá ser um caminho a trilhar por vias indiretas, envolvendo emissões de dívida por várias entidades europeias e em diversos quadros jurídicos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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