“O euro tem hoje uma rede de protecção incomparavelmente superior à da crise de 2008”

Mário Centeno considera que a economia e as finanças públicas da União têm hoje mais trunfos para responder a uma crise grave.

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Nuno Ferreira Santos

O ministro das Finanças e presidente do Eurogrupo lembra que algumas das deficiências da moeda única foram superadas, a economia cresceu 25 trimestres consecutivos e há 14 países com os défices sob controlo. São argumentos que lhe permitem uma visão mais optimista sobre a capacidade da zona euro enfrentar a crise. Até porque, hoje, a França e a Alemanha têm uma “visão muito clara e muito construtiva” sobre o caminho a percorrer.

Em 2009 [quando a crise financeira se tornou evidente], a palavra de ordem da UE era “gastem, gastem, gastem” e, dois anos depois, era “cortem, cortem, cortem”. Isso criou uma enorme tensão entre países que se sentiram duramente sacrificados por essa oscilação de 180 graus da política europeia. Esse cenário, se por hipótese voltasse a acontecer, seria suportável para um português, um grego, um espanhol ou um italiano? Começariam a pensar que há europeus de primeira e de segunda? Tira completamente este cenário de cima da mesa?
Não acho, de modo nenhum, que haja europeus de primeira e europeus de segunda. É a própria razão de ser da União Europeia que não seja assim. Há duas diferenças entre o que se passou entre 2008 e 2009 e o que se está a passar agora.

Já enumerou várias.
Sim. O euro tem hoje uma rede de protecção incomparavelmente superior à que tinha nessa altura. Todos hoje aceitamos sem pestanejar que o euro foi criado como uma instituição incompleta, o que não tem nenhum mal. As instituições são obras dos homens e vão-se aperfeiçoando e desenvolvendo. Aprendemos com essa crise. Os erros que cometemos nessa altura, como aquele que acabou de referir, estavam muito ligados a essa incipiência dos instrumentos de que o euro dispunha para responder à crise. Hoje já não é assim. As circunstâncias foram alteradas pela criação do MEE e por toda a rede de segurança que foi, entretanto, criada — o mecanismo de supervisão único, o mecanismo de resolução único, as autoridades europeias nos seguros, na banca, nos mercados de capitais, o manancial de instrumentos que o BCE tem hoje e que não tinha na altura. O próximo Quadro Financeiro Plurianual já inclui um instrumento orçamental para a convergência e competitividade na área do euro e espero que ele possa vir a ser também um instrumento de resposta no contexto da recuperação. São inúmeras e muito importantes as diferenças institucionais.

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Além disso, as economias estão com mais saúde.
Temos uma grande diferença em matéria de desequilíbrios macroeconómicos, que eram abundantes na altura e que não o são hoje. Tivemos o mais longo registo de crescimento económico no conjunto dos países da área do euro até ao trimestre passado – são mais de 25 trimestres consecutivos de crescimento. Os 13 milhões de empregos criados desde a crise são também testemunho disso. Temos 14 países já no objectivo de médio prazo ou próximos dele na área do euro [sem défice]. Nada disto tinha acontecido antes da crise anterior. Temos países como Portugal, Espanha, Itália com excedentes nas suas contas externas – com poupança face ao exterior, que provocou reduções enormíssimas do endividamento privado desses países. E isto significa que os bancos têm liquidez, coisa que, na altura, não acontecia – um dos grandes problemas da crise de 2008-2009 foi a falta de liquidez associada a taxas de juro mais altas. Hoje, temos muita liquidez e taxas de juro muito baixas.

É essa nova realidade que afastas os riscos que referi?
Mas também não quero ser complacente com o processo de decisão. Tudo isto vale de muito pouco, se não soubermos tomar as decisões certas. Tudo o que fizemos não vai, no entanto, obstar a que seja preciso dar o passo seguinte, que essa discussão tenha de ser feita e que seja absolutamente essencial repercutir ao longo do tempo os custos [do endividamento], como está no parágrafo 19 do relatório.

Há uma palavra que parece deliberadamente afastada – “austeridade”. Ficou com muito má fama nos anos da crise anterior. Tem referido que a retoma será rápida. O FMI diz a mesma coisa. O que é que justifica esse optimismo?
Há uma parte disso que é quase sistémica. Pense na economia como um sistema: nós estamos a hibernar esse sistema. É quase como, num computador, fazer Control+Alt+Delete e depois ver o sistema a recuperar.

Um restart
Muitas das estimativas para o segundo trimestre deste ano a nível europeu apontam para uma queda do PIB de 20%. No pior dos trimestres da anterior crise, a queda do PIB foi de 4 ou 5%. É uma escala que não tem rigorosamente nada a ver com qualquer situação anterior. Larry Summers [economista de Harvard, secretário do Tesouro de Clinton] descreveu recentemente a transição da crise para a recuperação como sendo a passagem de um domingo para uma segunda-feira. O PIB no domingo também é muito baixo e, na segunda-feira, quando retomamos o trabalho, o PIB dá um salto. O sistema reage da mesma maneira. E isto acontecerá de forma natural, quando encontrarmos uma cura ou uma vacina e se conseguirmos, enquanto não as tivermos, lidar com uma situação que hoje já conhecemos bastante melhor. Se isto acontecer, é talvez a mais rápida aprendizagem da humanidade, colocada perante uma dificuldade destas. Temos de acreditar que a ciência e a capacidade de nos protegermos permitirá que isto aconteça. Mas isto não quer dizer que não tenhamos um período de ajustamento.

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Nuno Ferreira Santos

Com muito desemprego?
Ainda que balizado no tempo. Os mecanismos de protecção permitem reter o emprego nas empresas – e isso só faz sentido precisamente porque é temporário. Na transição de um domingo longo para uma segunda-feira laboriosa, mesmo com todos os problemas que as segundas-feiras têm para as pessoas normais, nós devemos retomar essa actividade. Com segurança.

A Alemanha é um país incontornável. Teve um papel fundamental na gestão da anterior crise, para o bem e para o mal. Crê que a chanceler Merkel vai conseguir estar à altura do momento que atravessamos? Muita gente faz esta pergunta, como sabe.
A Alemanha tem demonstrado o seu compromisso com a Europa. Obviamente, as relações entre a Alemanha e a França são um catalisador muito importante para todas as decisões. Sempre foram. E vão continuar a ser — é o que penso. Temos hoje a felicidade de ter no Eurogrupo, quer do lado francês, quer do lado alemão, dois ministros que têm uma visão muito clara e muito construtiva do caminho que estamos a fazer.

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