Enquanto viajares sozinho fica tudo na mesma

Como o mapa de Jorge Luís Borges, tão detalhado que cobre todo o território que representa, também as artes performativas vivem neste paradoxo, em que cada um tende perigosamente para se representar apenas a si próprio, um para um, como na cartografia do escritor argentino.

À saída do século XX, a representatividade política, no setor das artes performativas, estava reservada apenas a um sindicato, o STE. Só na primeira década do século XXI, surge a Rede e depois a Plateia, a primeira agregando organizações de dança de todo o país, a segunda agregando organizações e profissionais de teatro e dança da região norte, em particular do Porto. Só na última década surge o CENA, sindicato que entretanto se funde com o STE; e mais recentemente é criada a Performart, em torno de organizações não só privadas mas também públicas.

A pandemia parece ter escolhido o momento certo para dificultar o trabalho de representação do setor, ao apanhar tanto a Rede como a Plateia, entre mandatos de órgãos sociais e com um raio de atuação muito diminuído. Sobraram então o CENA-STE e a Performart, limitados pela sua própria natureza: o CENA-STE pela condição sindical que o exclui de alguns processos de decisão política – e a Performart pela sua ontológica impossibilidade de confrontar o Estado, já que este tutela algumas das mais importantes organizações suas associadas.

Na verdade, são crónicos os obstáculos à representatividade política, num setor em que, para cada questão, há quase sempre metade dos interessados que pensa uma coisa e outra metade que pensa o contrário; pelo menos a julgar pelo Estudo do Posicionamento das Entidades Artísticas de 2017. Porque neste setor costuma ser muito intensa a concentração nos fenómenos políticos mediáticos, e não tanto nas relações de poder que os condicionam; veja-se, por exemplo, como os resultados dos concursos de apoio às artes geram sempre uma eminente massa crítica de protesto, mas a manipulação descarada de um procedimento administrativo – pela ministra da Cultura, para não prejudicar a campanha eleitoral do partido do Governo – não suscita grande comoção, nem nos agentes nem na própria comunicação social.

E esta navegação à vista anda de mãos dadas como um foco no curto prazo – certo, se vives à rasca não tens tempo para pensar no amanhã – em que os artistas competem pelos escassos recursos disponíveis, constantemente surpreendidos com regras que sentem chegar de um momento para o outro, quando na verdade, do que se trata é da ausência de participação no momento pretérito de discussão das regras; e se isto é assim no contexto nacional, imagine-se no contexto europeu. E então veremos um setor que, a cada década que passa, não compreende que os termos da sua existência na década seguinte... estão agora a ser decididos; e que quando tentar intervir, dez anos mais tarde, em Portugal, já o mais importante foi decidido, em Bruxelas. A dificuldade de mobilização, para o longo prazo, será então a principal responsável pela perpétua sensação de que tudo está por fazer (o que não é verdade); e que por sua vez induz o mantra da “necessidade de alterar o modelo”, substituindo-o por outro que, claro, também não deixará ninguém satisfeito.

Entre os sinais mais habituais desta patologia da representatividade, podemos destacar dois particularmente perniciosos: por um lado, uma oligarquia de opinion makers, normalmente composta por programadores, que costuma ser chamada, pela imprensa e pelo Estado, a emitir opiniões que nada mais representam do que o seu autor; por outro lado, e aqui entram sobretudo os artistas, vários agentes para quem a política não atravessa o arco do proscénio, deixando que as boas intenções do seu repertório se percam, entre os recibos verdes a que condenam os trabalhadores, nomeadamente atores e técnicos, num absoluto desrespeito pela legislação laboral; e em particular pela Lei 4/2008 que (não) se aplica ao setor. Se calhar, de tanto trabalhar em ficção, parece natural a todos imaginar que existe uma relação de trabalho independente, onde a lei aponta uma relação entre patrão e trabalhador.

De facto, esta ideia de que todo o teatro é político e que fazer teatro só por si é bom e é um ato político, e mais a Grécia, e mais a pólis e mais a atualidade do tema, etc., etc. – já nos acompanhará, pelo menos, desde meados do século passado. Nunca esquecerei uma entrevista de Mariana Rey Monteiro – atriz muito reconhecida, filha também de uma atriz e empresária, marcante na economia da produção teatral portuguesa no século XX – que descrevia os artistas de teatro, nos anos 60 – pelo menos os que ela conhecia – como uns seres à parte do mundo, a quem isso da ditadura e da política não importava, tão apaixonados que estavam pela sua arte. Certo que esta situação muda radicalmente, com as companhias independentes que, antes e depois da revolução de abril, abrem as portas de uma nova relação entre arte, vida e política, através, tantas vezes, de artistas arrancados aos bancos das faculdades de direito, letras e belas artes.

Entretanto, 20 anos depois de abril, começam a chegar, ao mercado de trabalho, os primeiros artistas e técnicos diplomados pelas novas escolas politécnicas e profissionais, num processo, tão natural quanto imparável, que passou a condicionar o exercício da atividade a uma prévia experiência académica, intensa e centrada exclusivamente no domínio das artes. Esta geração, que viveu, em grande parte, de trabalhos intermitentes e precários, está hoje entre os 40 e os 50 anos; sendo que, atrás de si, todos as outras fizeram percurso semelhante. Sempre a tentar resolver um ano de cada vez, um projeto de cada vez, um dia de cada vez, sem tempo para levantar a cabeça e olhar para um futuro que se afigurava distante, e que agora parece ter chegado de repente; mas já se anunciava há duas décadas, as da precariedade e exclusão da Segurança Social, cuja correção só se iniciou em 2019, com um novo regime de contribuições.

Mais do que a desintegração dos mecanismos mais básicos – laborais, fiscais, sindicais, associativos e de segurança social –  do Estado de direito social, impressiona tomar consciência da dificuldade que muitos profissionais confessam: a de compreender as regras do sistema em que estão inseridos, tanto as próprias do setor, como, mais ainda, as transversais. E é aqui que se cava este desempoderamento nas vidas de quem, sobre os palcos, tanto luta para empoderar os outros, mas fora deles só se consegue motivar por lutas de curto prazo, adversário à vista e assaltos breves.

Esta imaturidade representativa – a que impede o exponenciar dos laços e dos termos de agregação, como acontece na generalidade das outras áreas – é responsável por um défice crónico de participação política, que a pandemia sublinhou até ao insustentável, deixando (quase) desertas as mesas em que se discute não só o presente (as medidas de emergência) mas também o futuro; por exemplo, a regulamentação da Rede de Teatros, que mais à frente surgirá, também “de repente”, por ter cumprido, antes das primavera, a (não) discussão com as organizações representativas.

Agora, cada perfil de rede social é um palco em que cada um, sozinho, escreve o seu abaixo assinado que dirige diretamente à ministra da Cultura ou até ao primeiro-ministro; e sempre que duas destas solidões se encontram, podemos ter por garantido um novo movimento que, como sempre, durará o tempo que durar o fenómeno em curso, para logo depois ser abandonado. Como o mapa de Jorge Luís Borges, tão detalhado que cobre todo o território que representa, também as artes performativas vivem neste paradoxo, em que cada um tende perigosamente para se representar apenas a si próprio, um para um, como na cartografia do escritor argentino.

Enfim, permanece com a razão o titular da pasta da cultura, que uma tarde me recebeu no Palácio da Ajuda, em representação de uma associação profissional. Questionei-o então acerca do porquê de não se avançar com uma iniciativa política relativamente consensual. Simpático, convidou-me a espreitar pela janela, perguntando-me se via alguém no pátio. Não via, claro, estava sozinho. Esclareceu-me então que, no dia em que não viesse sozinho, o primeiro-ministro lhe telefonaria, perguntando o porquê dos protestos dessa multidão. E aí sim, ele teria que fazer alguma coisa. Até lá, enquanto eu viajasse sozinho... ficava tudo na mesma.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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