Agora, “todo o gato-sapato tenta entrar no negócio” das máscaras

Num momento de escalada de procura a nível internacional, Portugal vira-se para a produção nacional. A reabertura das portas vai ser acompanhada por milhões de máscaras e a indústria têxtil prepara-se para massificar produção de uma peça que promete entrar na paisagem do quotidiano.

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Paulo Pimenta

Se o mercado das máscaras fosse um gráfico, era provável que estivéssemos no início de uma curva exponencial. Quando acontecer, o regresso à rua vai ser feito de cara tapada e as recomendações de generalização de utilização pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) devem ajudar massificar o uso.

Na sessão em que o Parlamento prolongou o estado de emergência, António Costa apontou as máscaras sociais como um dos principais elementos para que o país comece a pensar em deixar o confinamento. “Reanimar a economia sem deixar descontrolar a pandemia” é o objectivo mas, para isso, será preciso “aprender a conviver” com um vírus para o qual não há vacina — nem deverá haver tão cedo. A corrida global ao material de protecção individual levou a situações de escassez e de aumento generalizado de preços. O que significa que, para reabrir o país, será preciso massificar o fabrico de um produto que era maioritariamente importado.

O país tem capacidade para isso? O director-geral do Citeve (Centro Tecnológico das Indústrias Têxtil e do Vestuário de Portugal), António Braz Costa, acredita que sim. Numa primeira fase, perante a insuficiência de matéria-prima, o centro de investigação da indústria têxtil começou a procurar alternativas que poderiam ser utilizadas na produção de equipamento de protecção individual (EPI), este mais virado para consumo hospitalar. Depois passou à investigação para ajudar “à tipificação da máscara ideal de utilização comunitária”, num trabalho que começou a ser desenvolvido em meados de Março, numa altura em que ainda não era clara a orientação do Governo. Ou melhor, a indicação era para não generalizar o uso, num discurso que foi recentemente invertido.

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Funcionárias do Grupo Fardias fazem máscaras de protecção individual para responder a uma encomenda do governo Regional da Madeira Homem de Gouveia/Lusa

A 22 de Março, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, dizia: “Usar máscara não vale a pena.” E acrescentava: “O distanciamento social é mais importante.” A mesma responsável dizia ainda que o uso levava a uma “falsa sensação de segurança”. Já nesta semana, a 13 de Abril, a própria DGS revertia o sentido: lançava novas indicações e aconselhava o uso de máscaras em espaços interiores fechados com várias pessoas. Esta deve ser vista como uma medida de protecção adicional ao distanciamento social, à higiene das mãos e à etiqueta respiratória, acrescenta a DGS.

O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), Alexandre Lourenço, entende que, “por medida de precaução, a utilização de máscaras poderia ter sido generalizada”. Apesar disso, “não faria sentido que toda a população as utilizasse, quando não havia máscaras suficientes para a faixa de maior risco” — os profissionais de saúde e grupos vulneráveis. No entanto, “a comunicação podia ter sido mais transparente”.

Somando a indicação da DGS ao discurso do primeiro-ministro, não é difícil de prever uma nova vaga na corrida às máscaras num negócio que, até agora, é contado através de notícias de escassez, especulação de preços e anúncios de reforço de material em hospitais e centros de saúde. Mas também de voluntarismo da população e de generosidade de privados.

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Voluntária produz máscaras em Leiria Paulo Cunha/Lusa

Novo normal

“As empresas viram nisto uma de oportunidade de passar o ‘vale da morte’”, diz Braz da Costa. Ou seja, produzir alguma coisa num tempo em que as vendas ao público de outros materiais ficaram congeladas. O Citeve já foi contactado por perto de 250 empresas do sector têxtil, “a pedir ajuda para avançar com a produção”. Algumas delas, explica, têm uma enorme capacidade de produção. E de que números estamos a falar? “Uma empresa grande pode produzir um milhão numa semana; há muitas que podem produzir 500 mil e há empresas mais pequenas que podem chegar a 100 mil por semana.” Ou seja, “a capacidade potencial é gigantesca. A capacidade que se vai instalar depende da necessidade”.

Sabe-se que a procura será grande, mas ainda se desconhece a dimensão. O sector prepara-se, tendo acelerado o processo a partir do anúncio das especificações técnicas pelo Infarmed. “Tal como as coisas estão a correr, no final do mês, teremos muitos milhões de máscaras no mercado. Esse era o desafio, porque sabemos que qualquer diminuição da intensidade das medidas de confinamento vai ser acompanhado por exigência da utilização de máscaras”, antevê Braz da Costa.

Haverá essencialmente três canais: compras públicas (o Ministério da Educação já se comprometeu em fornecer gratuitamente máscaras aos alunos, por exemplo), grande distribuição (super e hipermercados) e empresas, que vão precisar deste material para que os trabalhadores retomem a actividade. Ao P2, fonte oficial do Ministério da Educação refere que é prematuro avançar com números, numa altura em que ainda estão por definir a data e os termos do regresso de alunos do 11.º e 12.º às salas de aula. Mas não é expectável que o negócio das máscaras se fique pelo curto prazo. “Não é uma questão apenas de resolver o problema da covid-19, mas é uma questão de mercado das próprias empresas”, diz o director do Citeve. “Já tivemos o contacto de uma grande marca de venda a retalho, de fast-fashion, que pediu ajuda para integrar máscaras nas suas colecções”, revela Braz dos Santos. Também já tiveram pedidos semelhantes de marcas de luxo. É um sinal dos tempos e indicador do que aí vem, numa indústria que “não será igual ao que foi”. Vai mudar, como vai mudar o comportamento social das pessoas, prevê o mesmo responsável. E isso leva a que “este conceito de mistura de protecção individual com a moda vá entrar nas cadeias, nos desfiles e as grandes marcas terão as suas soluções.” O sector está “extremamente interessado” nessa vertente,  pela oportunidade de negócio que se abre.

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Instalações da Raclac, uma empresa de Famalicão que vende máscaras Paulo Pimenta

Quanto vale o negócio?

É difícil de dizer. Pelo menos para já, quando há ainda muitas incertezas e a produção em massa está a começar. Estando longe de compor um retrato completo, uma ideia de contexto pode ser dada pelos contratos de entidades públicas disponíveis na plataforma base.gov. Procurando por “máscaras”, a soma dos contratos que incluem este termo (e excluindo máscaras especializadas) ultrapassa os sete milhões de euros nos primeiros quatro meses de 2020. Grande parte das máscaras são cirúrgicas ou do tipo FFP2. Utilizando os mesmos critérios e olhando para o intervalo de Janeiro a Abril de 2019, o valor é pouco superior e meio milhão de euros. Ou seja, só no sector público, a cifra é multiplicada por 14. É também preciso explicar que estes valores são apenas indicativos: alguns destes contratos são relativos apenas a máscaras, mas há outros que incluem outro equipamento de protecção individual. Por outro lado, há também contratos cuja descrição refere a aquisição de material de protecção individual, sem especificar. De um ano para o outro, não engordaram apenas os milhões. Cresceu também a lista de entidades públicas a adquirir este tipo de produtos. Se em 2019 os compradores eram essencialmente hospitais, institutos de oncologia e misericórdias, em 2020, juntaram-se à corrida municípios — com Lisboa e Cascais à cabeça — Protecção Civil, comunidades intermunicipais, empresas de águas, GNR, entre outros.

E se há mais gente a comprar e em maiores quantidades, há também mais gente a vender. E não apenas empresas ligadas ao sector da saúde, como a Enerre, empresa de brindes que forneceu as câmaras de Lisboa e Cascais, ou do Grupo 8, a quem o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) comprou 74 mil euros em máscaras.

O presidente da APAH, que é também administrador no CHUC, explica que os hospitais foram forçados a produzir o próprio material de protecção, mas também a procurá-lo onde existe, desde que este cumpra os requisitos. “Os hospitais tiveram de consultar o mercado, ver intermediários e houve contactos de empresas que, apesar de este não estar no seu core business, estão a comercializar o material”, diz Alexandre Lourenço.

“Como acontece sempre que há uma grande escassez de um determinado artigo no mercado, e como consta que isto pode dar grandes lucros, vem todo o gato-sapato tentar entrar no negócio.” Esta análise é feita ao P2 por uma fonte ligada a uma empresa de material ortopédico que preferiu não ser identificada. Essa empresa fez agora uma incursão pelo negócio de máscaras cirúrgicas e FFP2. “No meu caso, fui contactado por um fornecedor chinês com quem já trabalhava há algum tempo”, conta. Mandou vir 20 mil unidades. Estão a sair bem? “Com certeza.” Mas não vai fazer mais nenhuma encomenda tão cedo. E explica: “Com esta onda de preços, com o custo do transporte e custos aduaneiros, tornou-se incomportável. Os preços são disparatados. Já fui contactado por um produtor nacional para me vender a nove euros a unidade, quase o triplo do que eu estou a vender ao público. Ainda teria de acrescentar a minha margem (cerca de 30%). Não vou comprar rigorosamente nada a esse preço.”

É também neste ambiente que os hospitais têm de encontrar EPI, nomeadamente máscaras, no mercado. “Já foi pior, mas mantém-se algumas dificuldades” na aquisição, confirma o representante dos administradores hospitalares. Alexandre Lourenço defende que estas compras deveriam ser feitas de forma centralizada, até porque a concorrência, ainda que involuntária, entre hospitais, leva a um efeito perverso: “O aumento de preços.”

Já na última sexta-feira, o Governo impôs um limite máximo de 15% de lucro na comercialização de dispositivos médicos e equipamentos de protecção. Isto depois de um mês em que a ASAE recebeu perto de 4500 denúncias, grande parte relacionadas com especulação de produtos como máscaras, álcool e álcool-gel.

Sobre as encomendas à China, onde são produzidas as maiores quantidades deste material, esta fonte ligada a uma empresa de ortopedia aconselha cautela. “É preciso não esquecer que o que é comprado à China agora é pago de forma adiantada e quem entrar no mercado neste momento e não conhecer o fornecedor arrisca-se a ter um desgosto, nomeadamente com o desvio das mercadorias. Imagine que eu tinha pago, chegava lá um americano e levava a produção toda e a mercadoria ou chegava daqui a três meses ou não chegava? Hoje, é preciso muito cuidado com este tipo de negócios.”

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