Um 25 de Abril mirradinho?

Ninguém duvida da legitimidade democrática do decidido por larga maioria parlamentar, mas decisões destas correm o risco de perder a população numa luta contra o vírus em que a unidade nacional é cimento agregador.

Compreendo que o cansaço que todos sentimos por, de repente, estarmos enjaulados e se ter modificado radicalmente o nosso estilo de vida nos faça reagir de forma exacerbada a coisas que, em minha modesta opinião, não mereciam tanta cera.

Sou um filho de Abril, nascido em 1977, beneficiário líquido do ensino público que me permitiu ter uma profissão de que gosto e ter uma vida digna. Se tivesse nascido antes, o mais certo era ser barbeiro, como boa parte dos meus ascendentes, o que também não estaria mal. O que me importa pôr em relevo é que, várias décadas depois, ainda há muita gente – demasiada – que se julga senhor da Revolução dos Cravos, em total falta de sintonia com o seu objectivo mais profundo. Claro que ainda há muitas pessoas, em especial as que sofreram na pele ou dos seus familiares, nacionalizações e desmandos que sempre existem em qualquer processo revolucionário, que preferiam que este dia ou não tivesse existido, ou fosse de outra forma, numa espécie de “confederação” de Estados não contíguos ou de uma “commonwealth” à portuguesa.

A História já se foi encarregando de estudar estas opções e continuará a fazê-lo, embora haja uma parte estéril nesse domínio: nunca há certezas sobre aquilo que não aconteceu. Agora que La Palice apareceu, também é da sua corte dizer que ninguém que seja democrata põe em causa que se festeje o 25 de Abril, data fundadora do nosso regime. Também se não nega que o modelo actual está gasto, há muito, como boa parte dos agentes políticos já admitiu. Do mesmo modo me parece infeliz uma certa corrente que entende que se não há missa nem houve Páscoa, também não há 25 de Abril para ninguém. O Estado é laico e só se pode comparar o comparável.

Isto dito, mesmo que se garanta a distância de segurança, 130 pessoas num mesmo espaço – bastando conhecer o hemiciclo que só na televisão parece grande –, mesmo não sendo epidemiologista ou sequer médico, julgo que o bom senso teria aconselhado a que o formato escolhido não fosse este. Ninguém duvida da legitimidade democrática do decidido por larga maioria parlamentar, mas decisões destas correm o risco de perder a população numa luta contra o vírus em que a unidade nacional é cimento agregador. Não unanimismo nacional, pois a democracia não está suspensa, nem a Constituição o permite. Não desatámos agora todos a ter de concordar com o Governo, mesmo que faça asneira, pois só assim é que seríamos patriotas. Mas temos de ser responsáveis, como têm em geral sido os partidos e os parceiros sociais, dando uma lição aos nossos malogrados vizinhos espanhóis, só possível por sermos um povo vetusto.

A linha argumentativa de se não houvesse uma cerimónia deste tipo, sairia do fim da pandemia um ambiente favorável a forças anti-democráticas, possivelmente de direita radical, não tem sentido. Quantas pessoas acompanham a cerimónia na Assembleia? Não me parece que seja um must de audiências. Não comemorar desta forma, mas, por exemplo, através de emissão pela televisão, como sempre, e nas plataformas digitais, numa sala que não tinha de ser o plenário, com o Presidente da República, o Presidente da Assembleia, o Primeiro-Ministro e os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, com uso da palavra, apenas, pelos dois primeiros, seria muito mais avisado. Do mesmo modo que daria uma imagem de união entre todos os órgãos de soberania, sóbria, condizente com o esforço que se pede – e bem – a cada um de nós.

Defender as comemorações assim é ser de esquerda e opor-se a esta solução, com uma multiplicidade quase interminável de outras opções, é ser de direita. Tenho lido tantos comentários neste sentido. Pensava que já tínhamos aprendido mais sobre o que é a democracia e sobre como ela é o regime por excelência que a todos ensina que a realidade não é maniqueísta.

No 25 de Abril da pandemia comemorar-se-á como decidido. Pois bem, resta-nos apenas esperar que a natural aquiescência do Ministério da Saúde e da DGS (alguém acredita que podiam dizer coisa diversa?) se concretize em nenhum risco para além daquele que diariamente todos temos de suportar para viver. E se assim não for, que todas e todos recuperem sem necessidade de cuidados intensivos.

Não negando que a Revolução não é um facto unânime – e, em certa medida, ainda bem, pois é o mais natural possível –, julgo que é mais o cansaço de estar encerrado em casa e de não poder usufruir do espaço público como anteriormente que motivou as pessoas a assinarem a petição. A velha ideia tão humana de que “estes tipos se estão a armar em finos lá por serem ‘importantes’ para não fazerem como o resto da maralha”. Tenho a certeza que nada tem que ver com uma rejeição dos ideais de Abril. E a “contra petição” tem o valor que tem, embora me pareça um tanto infantil: a minha petição é maior que a tua!

O que mais releva é, como tem dito Marcelo, “ganhar Abril”. Di-lo no contexto da pandemia. Digo-o agora no contexto do especialíssimo momento colectivo que vivemos. Matar o bicho, matar a fome que ele já está a provocar e o pior que está para vir, só se consegue com os valores que tanto amamos do nosso Abril-Revolução. É essa a batalha das nossas vidas e que vai durar décadas. E é iluminados pela democracia, pelo pluralismo, por uma sociedade livre, justa e igualitária que essa luta pode e deve ser ganha.

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