Covid-19: vamos ter que lutar por um lugar no futuro

Ao vírus do medo contrapomos este: o da esperança, para o qual, ao contrário da covid-19, esperemos que não haja vacina nem imunidade.

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Daniel Rocha

A pandemia de covid-19 é a chamada wild card, um acontecimento extremo para o qual não nos preparámos. A nossa incapacidade de pensar prospectivamente é directamente proporcional à incerteza e vulnerabilidade que estamos a sentir. Em Portugal, excluindo alguns projectos científicos, não existe uma prática de cenarização capaz de convocar a sociedade, a academia ou as instituições a imaginar o futuro. 

Hoje estamos às cegas, esperando um regresso a uma nova normalidade que não sabemos qual é. Dizem-nos que a economia tem que ser reaberta, mas podemos perguntar: que economia e em que contexto? Uma economia que esmaga o Estado e o serviço público, explorando intensivamente a humanidade e os ecossistemas? Uma economia que provoca abismos de desigualdade e que, no limite, nos condena à morte, na sua sede de lucro e de crescimento constante? 

Dizem-nos que a União Europeia será solidária. Que União Europeia? Aquela que nos fez acreditar que poderíamos dissolver o nosso sector primário e secundário e viver exclusivamente do turismo e dos serviços? Aquela que se fundou no desequilíbrio estrutural entre os países e que nos obrigou a resgatar o sistema financeiro com doses cavalares de austeridade? Aquela que se prepara para nos fazer pagar os custos sociais de uma pandemia à custa do endividamento do Estado, das famílias e das pequenas e médias empresas? 

E, por fim, que território e recursos nos restam após este percurso? De que nos servem agora as cidades inundadas de alojamentos locais e de terminais sem cruzeiros? De que nos serve termos deixado tanta gente sem tecto ou isolada em bairros sociais ou de barracas, sujeitas agora a sofrer duplamente as consequências de uma crise sanitária e socioeconómica? De que nos servem os territórios rurais, esvaziados de actividade agrícola, envelhecidos e à mercê dos incêndios? De que nos servem as zonas industriais abandonadas e o desmantelamento progressivo da sua capacidade produtiva? De que nos servem os territórios assolados pela construção especulativa, corrompendo os recursos naturais e criando um manto de urbanizações que ficarão suspensas na paisagem? 

O que nos resta, de facto, são as ruínas de uma política estratégica míope e imediatista, encurralada num mercado global liberalizado que nos empurrou para a especialização económica e para uma profunda dependência externa. Perante o colapso deste mercado, tanto do lado da procura como da oferta, exigia-se uma resposta conjunta a nível internacional, assente em novas ideias económicas e sociais e numa maior margem de manobra do lado das políticas orçamentais e monetárias. Os sinais, contudo, são os opostos: ao que parece um problema que é global terá que ser resolvido no interior de uma geografia de nações, recorrendo a instrumentos obsoletos. Sim é “repugnante”, como refere e bem o primeiro-ministro António Costa. Mas, tal como na crise os incêndios, será necessário rastrear as decisões governativas e as fracturas que, ao longo do tempo, nos foram tornando mais vulneráveis. 

Pensar o futuro sem realizar esta análise crítica é regressar ao lugar do acidente e do risco. Os guardiões deste lugar – escudando-se em organizações internacionais, em paraísos fiscais, em agências de rating e na fina finança desterritorializada —, ao contrário de nós, dominam as técnicas de cenarização estratégica e preparam-se para nos lançar no cenário business as usual, onde já definiram quem ganha e quem perde. A narrativa deste cenário será montada e colocará as democracias sob pressão. Vão convencer-nos que temos que abdicar dos salários, dos direitos e dos empregos, vão coagir-nos a sacrificar vidas, vão pedir-nos que sejamos resilientes, vão converter-nos aos benefícios da hiper-vigilância digital e do trabalho à distância, sabendo que isolados e controlados ficaremos cada vez mais impotentes e com as nossas liberdades restringidas. 

Imaginam a vida subjugada a um regime de coerção digital? Este é o momento de estarmos hiper-atentos ao que se desenha no mundo na sombra dos nossos próprios medos. É necessário convocarmos as nossas forças colectivas, o nosso conhecimento e a nossa solidariedade. Teremos que imaginar novas formas de pensar território e de lutar por um lugar no futuro. Perante a distopia, contrapomos a utopia; perante a abnegação, a criatividade e a reivindicação. 

Vamos querer, primeiro, a saúde pública e não a saúde do lucro, mas logo depois empregos dignos e não precários, casas para habitar e não para lucrar, educação universal e gratuita não elitizada. Vamos ainda querer viver num mundo de igualdade, não de exploração; de cooperação entre os povos, não de guerra ou competição. Vamos querer o ambiente e não a sua destruição, o tempo e não a submissão, a sociedade — não o poder ou populismo. Ambicionaremos outras coisas das quais nem sequer nos lembrámos ainda. Ao vírus do medo contrapomos este: o da esperança, para o qual, ao contrário da covid-19, esperemos que não haja vacina nem imunidade.

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