Ler ou não ler, eis a questão

Chega a ser comovente, no sentido trágico do termo, assistir a discussões em que pessoas informadas não conseguem ver uma única falha nas decisões e comportamentos das pessoas e das instituições que mais lhes aquecem o coração.

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Reuters/REGIS DUVIGNAU

Há uma razão lógica e compreensível para que o golo do Maradona com a mão contra a Inglaterra, no Mundial de 1986, seja o exemplo máximo da falta de carácter de um drogado batoteiro e narcisista, e que o golo do Vata com a mão contra o Marselha, em 1990, seja recordado como um momento de glória na história do Benfica. Como em quase tudo na vida, a verdade depende do ponto de vista do observador; e, como nos dizem os retrovisores, é sempre possível que a verdade esteja mais perto do que nos parece.

Essa tendência para olharmos à nossa volta e só vermos aquilo que nos interessa é tão velha como a própria humanidade, ou pelo menos como aquele outro hábito profundamente errado de se achar que os cereais vão para a tigela depois do leite, e não o contrário.

Há vários exercícios que podemos fazer para enganar essa tendência natural para acharmos que o mundo tem mesmo de ser assim como nós queremos e pronto. O primeiro, e mais importante, consiste em olhar para o problema como se fosse uma dependência — do jogo, das drogas, do álcool, de fazer sinais de luzes na auto-estrada quando um carro está a ultrapassar outro e o condutor não pode desviar-se para a direita.

Houve um tempo em que era mais fácil admitir que tínhamos um problema e que estávamos dependentes de torcer o braço à vida para que ela dissesse só aquilo que nós queremos ouvir. Mas depois apareceram as redes sociais e as caixas de comentários nas notícias.

Chega a ser comovente, no sentido trágico do termo, assistir a discussões em que pessoas informadas e esclarecidas não conseguem ver uma única falha nas decisões e nos comportamentos das pessoas e das instituições que mais lhes aquecem o coração.

É nesse momento que começa a segunda fase da operação Por um Mundo só com Pessoas Burras: já que os jornalistas não dizem aquilo que nós queremos que eles digam, vamos acusá-los de estarem ao serviço de forças externas. O problema é que são várias as situações em que os mesmos jornalistas são acusados de estarem ao serviço das forças mais distintas.

“O Público gosta do Sanders, pronto!”, lia-se num dos comentários a uma notícia sobre as eleições primárias do Partido Democrata norte-americano, em Fevereiro. Num outro comentário à mesma notícia, elogiava-se “um artigo aparentemente imparcial sobre política americana”, algo de que “o comité central do partido não vai gostar”. E, na mesma semana, numa outra notícia sobre as eleições primárias do Partido Democrata, o jornalista que tinha sido denunciado por favorecer Bernie Sanders e elogiado por ser imparcial, foi acusado de ser anti-Sanders e de estar a mando dos “bilionários e da Goldman Sachs”.

Mas nada se compara aos comentários e e-mails enviados por causa de notícias sobre o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

“Venho por este meio pedir que, ao invés de propagar um discurso perigoso, manipulador e falso – conhecido vulgarmente como Comunismo/Socialismo – se informe antes de passar vergonhas e enganar aqueles que, infelizmente, se deixam levar por discursos politicamente correctos por medo de expor a sua opinião”, dizia um leitor, na quinta-feira, sobre a notícia de que o Presidente Trump ameaçara suspender a sessão do Senado norte-americano.

Questionado sobre se teria lido a notícia em questão, a resposta chegou tão rápida quanto pouco surpreendente: “É óbvio que não ia perder o meu tempo a ler um artigo que seja de um diário vulgar como o Público que adora formatar gentes comuns.”

O diálogo entre jornalistas e leitores nunca foi tão importante como é hoje, e é por isso que não se deve correr o risco de confundir caixas de comentários e emails ofensivos com tentativas de diálogo. Se servirem apenas para repetir a tendência natural dos protagonistas da política para verem o mundo a preto e branco, os comentários podem estar a contribuir para criar novas gerações de jornalistas que se autocensuram por receio da reacção dos leitores.

E um jornalista não deve sentir-se limitado por ninguém — nem por políticos, nem por gestores, nem por leitores. Só assim, e por mais paradoxal e arrogante que possa parecer tanto a políticos e gestores como a leitores, se defende a liberdade de imprensa e a própria democracia.

Que venham os comentários e emails ofensivos de todas as formas e sabores, foi para isso que Deus criou o caixote do lixo.

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