Cuidado com o que desejas!

E foi necessário um vírus para nos dar a real noção do que é, e do que significa, na prática, a globalização e do que significam, na realidade, os nossos estilos de vida.

Foto
Unsplash

Embora tudo isso nos pareça muito distante, a verdade é que ainda há poucos meses, naquela que era a nossa existência “normal”, reclamávamos acerca da pressa dos nossos dias, das horas gastas no trânsito, do pouco tempo para estarmos com os nossos filhos.

Queixávamo-nos das ruas dos centros das cidades cheias de turistas, do excesso de alojamentos locais para esses turistas, das filas intermináveis no controlo de bagagens dos aeroportos, e da praia, onde não havia espaço livre para estendermos a nossa singela toalha, sem que isso implicasse uma confraternização íntima com uma família de cinco pessoas e respectivo farnel.

Protestávamos acerca das intermináveis conversas de um colega, e da falta de estímulo de um trabalho monótono e sempre igual, que tornava os dias igualmente monótonos e sempre iguais. Almejávamos os fins-de-semana para, em muitas segundas-feiras, apenas conseguirmos reclamar das suas rotinas.

Zangávamo-nos com os professores que ensinavam matéria a mais, com os alunos irrequietos e desinteressados, com a duração das aulas.

Lamentávamos uma natureza em colapso pelos nossos consumos excessivos: de roupas, de sapatos, de carros, de aviões, de comida… As roupas, os sapatos e as viagens que continuávamos a consumir e a comida que continuávamos a desperdiçar.

Perturbava-nos a falta de tempo para nós, a falta de tempo para reflectir e a alienação provocada pelas redes sociais, que nos viciavam.

Lamuriávamo-nos pelos incómodos do dia-a-dia: a falta de lugar para estacionar o carro; o atraso no metro; o restaurante onde se tinha acabado o prato do dia; o palreio, ao telemóvel, do cavalheiro da mesa ao lado; a gritaria das crianças, numa outra mesa, mais ao fundo.

Desabafávamos sobre o cansaço das festas familiares: os pais, os sogros, os cunhados e os sobrinhos, todos juntos, numa casa, a fazer barulho e a sujar loiça.

Discutíamos, à volta da mesa de café, a globalização na economia, na política, nas mudanças sociais.

Concluíamos da insustentabilidade dos nossos estilos de vida e gabávamos a coragem dos que tinham mudado, enquanto pesávamos o lastro que nos impedia essa mudança. Suspirávamos por algo que, num passe de magia, mudasse tudo…

E, de repente, mudou tudo.

E foi necessário um vírus para nos dar a real noção do que é, e do que significa, na prática, a globalização e do que significam, na realidade, os nossos estilos de vida: um vírus que se deslocou à velocidade do capital e à velocidade dos nossos quotidianos, espalhando-se por feiras de negócios, encontros sociais e culturais, reuniões políticas e viagens de lazer.

Um vírus que nos confina e nos assusta, transformando o nosso tempo e as nossas horas — que, subitamente, se fizeram longos; fazendo-nos partilhar os dias inteiros com os nossos filhos — até nos apetecer que eles tivessem nascido apetrechados com um botão de on/off.

Um vírus que esvaziou de gente as ruas das cidades, e nos ameaça as idas à praia — logo a nós, que até nem nos damos mal no convívio com desconhecidos e respectivos farnéis.

E o isolamento incomoda-nos, fazendo-nos sentir falta da conversa do colega que, se calhar, até nem é assim tão maçador. E o trabalho mudou todo, e está a ser um problema adaptarmo-nos a estas metodologias novas.

E o ensino à distância é estranho e difícil, e temos saudades dos professores — mesmo que demasiado exigentes. E saudades dos alunos — mesmo que irrequietos. E das aulas — mesmo que longas.

Percebemos que a natureza se está a regenerar e ficamos felizes por isso, mas, caramba, faltam-nos as compras e as viagens e os restaurantes apinhados.

Apetecem-nos os amigos, à volta de uma mesa, e as festas familiares, e fazem-nos falta os abraços e os beijos dos pais, dos avós, dos netos, ao mesmo tempo que bendizemos as redes sociais, por nos ajudarem a atenuar essa falta.

E temos mais tempo para reflectir e, nessa reflexão, agarramo-nos ao lastro de uma vida — dessa nossa vida de há poucos meses — e só queremos mudar tudo… para que tudo volte a ser como dantes. Assim, como num passe de magia.

Sugerir correcção
Ler 10 comentários