Embarcar nos livros, viajar com os miúdos sem medo em tempos de quarentena

Este texto é um passaporte conjunto, meu, dela e do pai. Ela tem dois anos e quatro meses e, todas as noites, fazemos viagens para as quais não há carimbos, até países que não vêm no mapa. Como os livros têm mais mundos do que o mundo, vemos coisas nunca vistas. E nem é preciso fazer as malas. É só embarcar sem medos e deixar-se levar pela mão das crianças. Elas nunca se perdem.

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No livro "Flores Mágicas" acompanhamos uma menina que vai apanhando flores dos passeios, enquanto anda com o pai pela cidade

Mesmo antes de conhecerem as letras, as crianças sabem ler. Viram páginas, admiram imagens, inventam histórias. Há cerca de dois anos, a idade da catraia cá de casa, que construímos um passaporte só nosso, um documento imaginário para registar viagens e descobertas.

Chegará o dia de rumar ao País das Maravilhas, à Terra do Nunca, de dar a volta ao mundo em 80 dias, entre muitas outras aventuras, mas, até lá, e dada a condição liliputiana da leitora com quem percorremos estas rotas, metemo-nos a caminho de territórios tão diversos como cidades ou ilhas de monstros. Esta é, por isso, uma escolha pessoal, familiar, uma amostra minúscula num universo tão vasto que até expedições à lua ou a planetas habitados pode incluir.

Porém, como as nossas viagens são também aquelas que ainda estão por fazer, haverá tempo, à medida que ela cresce, de conhecer outras paragens. Ela ainda tem, não o mundo, mas os mundos todos pela frente. Haveremos ainda de acompanhar Baltasar, o Grande (Kirsten Sims), chegar ao Pólo Sul com Perdido e Achado (Oliver Jeffers), fazer A Viagem (Camilla Engman e Veronica Salinas), decidir a Partida (André Letria).

Páginas de "Um dia na praia", um livro sem palavras escritas, mas cheio de possibilidades de leitura
"Para lá do oceano" apresenta-nos uma criança curiosa que, como todas, se questiona
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Páginas de "Um dia na praia", um livro sem palavras escritas, mas cheio de possibilidades de leitura

E porque as leituras dos mais pequenos são também as dos crescidos, haverá oportunidade talvez até de conhecer Quito, um dos livros da colecção A minha cidade, da editora Pato Lógico, e de carimbar no nosso passaporte faz-de-conta o Atlas das viagens e dos exploradores (Isabel Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho). Não podemos, claro, perder uma visita ao País das Pessoas de Pernas para o Ar, de Manuel António Pina, e gostávamos de ser apresentados ao O Rapaz que não se tinha quieto, a personagem criada por Rita Taborda Duarte que gostava de viajar, embora os pais lhe dissessem que “os gaiatos não se fizeram para andar por aí a passarinhar”.

Todos estes sítios chegarão cá a casa, ou nós a eles, mas para já a única forma de tirá-la de um apartamento, nestes tempos virados do avesso, é levá-la a acampar, à praia ou a passeios pela cidade. Fazemos mesmo isto tudo. Porque os livros não se esgotam quando se chega à última página.

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Onde vivem os monstros

Maurice Sendak
Kalandraka

Esta é a história de Max que, numa noite, e vestido de lobo, vê o incrível a acontecer, uma floresta a surgir no seu quarto. Mais do que uma floresta, aparece também um oceano e até um barco que o leva, depois de muito e muito navegar, ao lugar onde vivem os monstros. São monstros terríveis, mas Max não tem medo e, juntos, até se divertem numa grande festa. Nós, claro, fazemo-nos de convidados. É só chegar às páginas duplas de ilustração para o festejo sob a luz da lua se estender ao nosso quarto. Dançamos, fazemos sons tribais, fingimos tocar tambor. Depois, cansados, como Max, despedimo-nos de monstros tão simpáticos e regressamos à cama. Este livro já foi também o pretexto para, volta e meia, construirmos barcos de papel. O resto faz-se sozinho. Mal vê o barco, ela embarca logo. É um clique. E lá vamos nós outra vez.

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Iluminar a noite

Lizi Boyd
Edicare

Este é um livro sem palavras desenhadas na página. Mas lemo-lo em voz alta na mesma. Acompanhamos um pequeno rapaz que, com uma lanterna, vai descobrindo toda a natureza e animais que habitam a noite. Depois, são os animais que o conhecem a ele e o ajudam a regressar à sua tenda de campismo. Cá em casa, o livro já passou do papel à imaginação e da imaginação à acção. Apagámos as luzes, arranjámos uma lanterna e fizemos uma tenda com um lençol. Basta um pouco de escuro, um pouco de sombra, um esconderijo e lá vai ela acampar.

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Flores mágicas

Jon Arno Lawson e Sydney Smith
Livros Horizonte

O título do livro em inglês, Sidewalk Flowers, leva-nos mais depressa àquilo a que se propõe a obra, um passeio pela cidade. Numa altura em que se tem de ficar em casa, é com vagar que apetece deambular por aquelas páginas nas quais uma menina, vestida com um capuchinho vermelho, vai apanhando flores, enquanto anda com o pai pela cidade. De uma forma delicada, mostra-nos outro olhar sobre as pequenas coisas que nos rodeiam. Cá em casa, a identificação entre a protagonista da história e a leitora de palmo e meio é imediata. E é com este livro que lhe fazemos a vontade quando, de vez em quando, nos pede para ir à rua, passear.

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Para lá do oceano

Taro Gomi
Orfeu Negro

Nas páginas desta obra, é-nos apresentada uma criança curiosa, uma criança que, como todas, se questiona. Pergunta-se o que haverá para lá do oceano. Quer saber se haverá mais oceano, se haverá navios, quer saber se haverá campos, prédios, casas, se haverá animais, monstros e fantasmas, se haverá estrelas, um país gelado, se haverá alguém que passeia na areia (talvez uma criança com quem se possa brincar em tempos de isolamento – uma filha única precisa de amigos imaginários). O livro termina assim: “Quem me dera ir para lá do oceano e ver.” Como é com uma pergunta sobre o desconhecido que começam muitas viagens, esta é uma obra que nos pode levar a incontáveis paisagens. E como uma viagem não é mais viagem por ser mais longe ou mais perto, cá em casa, neste período de quarentena, pomo-nos com ela à janela para que possa observar cada movimento da rua: vê uma pessoa a passear o cão, vê as árvores, vê um autocarro em movimento, os carros parados. Sobre tudo aquilo em que repara, repete o mesmo: “Que bonito, tão bonito.” Nunca tinha feito isto antes.

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Um dia na praia

Bernardo Carvalho
Planeta Tangerina

Este é também um livro sem palavras escritas, mas cheio de possibilidades de leitura. Com ele, vamos até à praia, um lugar em que, até hoje, faça frio ou faça sol, a nossa pequena leitora se divertiu sempre. Assim que o azul das guardas surge, não há dúvidas, ela vê logo o mar. Mas o que acontece a seguir é mais desconcertante do que um rotineiro dia de praia. Cá em casa – mesmo que nos seus dois anos ela ainda não faça, como os pais, uma leitura ambientalista da história –, ela gosta de ir enumerando a quantidade de tralha que a personagem vai tirando do mar. A seguir, vem o final tão aberto como o oceano desenhado: com a parafernália que tira do mar, a personagem cria um barco e parte. Para onde, não se sabe. Mas essas são também as mais desafiantes viagens.

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