Comunicar marcas durante a covid-19

Dificilmente teremos uma sociedade justa e sustentável se não formos coerentes na aplicação dos valores da inclusão e da igualdade à comunicação que fazemos, valores estes que compõem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030.

Li há pouco um artigo de um autor italiano escrito a partir do isolamento de sua casa em Milão, uma das cidades mais afetadas pela covid-19. Descrevia o que observava a partir da sua janela e uma das situações que destacou foi a fila de pessoas que se acumulava frente à mercearia de um imigrante. Segundo ele, este merceeiro nem sempre foi bem acolhido pelo bairro, pela simples razão de ser imigrante. Referia que, porém, em período de isolamento pela covid-19, esta mercearia agora era um dos poucos oásis num bairro de pessoas fechadas física, emocional e psicologicamente, que ali procuravam abastecer-se de bens. O preconceito caiu por terra e a loja do imigrante passou a ser fundamental.

Esta história pareceu-me ser uma lição clara de como o preconceito assenta tantas vezes em argumentos vazios que rapidamente ficam expostos diante de situações de emergência e interdependência como a que vivemos agora. É impossível olhar para o lado e continuar a achar que o individualismo faz de nós seres autónomos omnipotentes e que o mundo está por nossa conta. Não é verdade. Somos falíveis, sensíveis, perecíveis, e estamos ligados à global teia da conexão humana. Não há peneira que tape este sol: cada pessoa é importante.

Aquele texto trouxe-me luz sobre a forma como várias marcas e entidades, nacionais e internacionais, estão a comunicar neste momento. Noto que há marcas nacionais a passar uma mensagem de proximidade, união e conforto ao país. A intenção é boa e legítima. Neste momento precisamos de mensagens de esperança, venham elas de políticos ou de empresas. Contudo, vejo que associada à boa intenção e às ideias de solidariedade, cooperação e interajuda, o conteúdo das mensagens não reflete os valores da inclusão, igualdade e diversidade. Tenho visto, nos canais de TV, exemplos de campanhas e vídeos que não são inclusivos. De forma inconsciente, pecam por dividir a sociedade em Nós e os Outros, e apresentam uma amostra da sociedade portuguesa que é parcial. Pelo contrário, a sociedade portuguesa é diversa, tem múltiplas vozes e cores, e não é só composta por pessoas brancas e/ou heterossexuais. Nas principais cidades do país vive população negra que cá nasceu há décadas, homossexuais que casam e têm família, muçulmanas de lenço que vão à universidade, imigrantes merceeiros, filhos de imigrantes que são portugueses e cá estudam, trabalham e têm direitos e obrigações como eu. Onde ficou este mosaico colorido na comunicação das marcas? Onde está a pluralidade e a diversidade étnica e cultural? Porquê reforçar estereótipos?

Como disse atrás, cada pessoa está inequivocamente ligada a uma fina teia de interdependência que alimenta as relações humanas e sociais de uma ponta a outra do planeta. Dificilmente teremos uma sociedade justa e sustentável se não formos coerentes na aplicação dos valores da inclusão e da igualdade à comunicação que fazemos, valores estes que compõem os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030.

Acredito que as empresas e marcas que estabeleceram metas para alcançar estes Objetivos e vêem na comunicação uma ferramenta para a materialização destes mesmos valores têm agora uma oportunidade única para comunicar de forma exemplar. Bem sei que a pressa e o unconscious bias podem ser inimigos de uma comunicação oportuna e inclusiva, mas a importância de não deixarmos ninguém para trás alavanca o ideal de uma sociedade que se quer socialmente sustentável e justa. Aproveitemos, então, este momento para alinharmos as nossas mensagens aos valores que defendemos.

Nas últimas semanas temos lido e ouvido vozes que questionam o atual paradigma social e económico, e vêm nesta crise mundial uma oportunidade para começarmos já a fazer a diferença saindo da normalidade anormal em que vivemos. Algumas delas têm servido de farol à humanidade nos últimos anos, com contributos e visões únicas mas que coincidem na busca de um novo sistema mais justo e humano, como sejam Naomi Klein, Angela Davis, Paul B. Preciado, Yuval Noah Harari ou Boaventura Sousa Santos, entre outras vozes importantes. Mas também as marcas podem alinhar-se às práticas e aos valores que devemos ativar para construirmos, lado a lado, uma nova sociedade através de ferramentas como a comunicação, fazendo uso de linguagem inclusiva, sensível ao género.

Depois da covid-19 não queremos voltar ao normal. Percebemos que a normalidade em que temos vivido exclui, mantém invisível e cria desigualdades. Sabemos fazer melhor.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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