Fauda, a série israelita sobre o conflito com os palestinianos, regressa à Netflix

Fenómeno e território de disputa, a série que é “caos” versa sobre comandos infiltrados israelitas que tentam eliminar ameaças terroristas palestinianas e é tanto elogiada quanto criticada. Terceira temporada estreia-se esta quinta-feira em streaming.

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"Fauda" NETFLIX

Em 2019, o New York Times escolhia Fauda como a 8.ª melhor “série internacional” da década, à frente de Killing Eve ou Fleabag e logo atrás de The Crown, Gomorra ou de Prisoners of War (Hatufim no título original), outra série israelita — a ocupar o número 1 desse prestigiado top — que é conhecida por ser a base da versão americana Segurança Nacional. Fauda é o maior êxito transfronteiriço da televisão israelita recente e a chegada da sua terceira temporada à Netflix esta quinta-feira serve para recordar a sua história.

O thriller político Fauda é obviamente espinhoso devido ao terreno minado onde se desenrola: entre Israel e a Palestina, com uma brigada do Exército israelita na posse do ponto de vista central da série. O título, esse vem do árabe — Fauda significa “caos”. A série é falada em hebraico e árabe. A primeira temporada, estreada em 2015 em Israel e que chegou à Netflix em 2016 para ganhar audiência internacional, dá a conhecer a unidade de infiltrados que trabalha na Cisjordânia em busca de terroristas que não quer propriamente capturar, mas matar.

É da autoria do jornalista Avi Issacharoff e do ex-militar Lior Raz, que diz que a série é a sua terapia depois de ter sofrido anos de síndrome de stress pós-traumático causado pelo seu trabalho como infiltrado. Raz é também o protagonista da série, interpretando o militar israelita Doron Kavillio. O elenco tem actores israelitas e palestinianos.

Na segunda temporada, estreada em 2018, uma nova ameaça entra em acção. Já não se lida apenas com o Hamas, por exemplo, mas com o Daesh. A terceira temporada, a que agora chega à Netflix (as três estão integralmente disponíveis no serviço), vai centrar-se nos danos colaterais do conflito - “vemos como as pessoas que não querem ir para a guerra, que querem viver em paz, se vêem envolvidas no conflito israelo-palestiniano”, resumiu Issacharoff à agência AFP. É também a primeira que tem lugar sobretudo na Faixa de Gaza, com as cenas que lá se passam a ter sido filmadas nas cidades de Kfar Kassem e Jisr al-Zarqa, ambas no lado israelita da região mas de maioria de população árabe.

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Uma questão de perspectiva

Fauda, como não podia deixar de ser em tudo o que se prende com a complexa situação no Médio Oriente, não é imune à polémica. A crítica mais leve é sobre o árabe falado pelos israelitas, cujo sotaque é estranhado pelos palestinianos. Rachel Shabi, autora do livro Not the Enemy – Israel’s Jews from Arab Lands, escrevia há dois anos no Guardian que a série muitas vezes é elogiada por ser equilibrada na forma como trata o conflito israelo-palestiniano, sobretudo ao mostrar o lado mais humano dos operacionais palestinianos que perpetram atentados, as humilhações por que passa um palestiniano ou o medo sentido em Israel e a tortura executada pelos protagonistas israelitas dos comandos conhecidos como Mista’arvim. “Mas tudo depende da perspectiva”, atentava.

Para os israelitas, Fauda permite de uma forma inédita “compreender os motivos e a emoção” de alguém que age como um terrorista. Mas Shabi nota numa mesma penada que a série não mostra bem a realidade dos colonatos, demolições de casas palestinianas e que por mais que não esconda os métodos violentos dos militares israelitas também não tem escritores ou consultores palestinianos para mostrar o tal equilíbrio pelo qual é louvada.

Os espectadores palestinianos dividem-se: houve apelos ao cancelamento da série que o movimento Boycott, Divestment, Sanctions considera “propaganda israelita anti-árabe e racista” que “justifica violações dos direitos humanos”, mas a autora de origem palestiniana Yasmeen Serhan, por exemplo, escrevia em 2018 na revista Atlantic que vê a série ciente dos seus problemas mas também da forma frontal como mostra a brutalidade do exército israelita ou situações corriqueiras embora violentas da vida na região. “Sobretudo”, admite a certa altura, “vi a série por causa daquilo de que me faz ter saudades. (...) Fez-me sentir mais perto da minha pátria ancestral mesmo que ilustrando cenas de violência que lá se passam”. A mãe de Serhan não conseguiu o mesmo, não tolerando a representação da violência contra palestinianos.

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Confrontado com as críticas à série, Issacharoff não hesitou em descrevê-la como “uma série israelita”, embora admitindo, com uma escolha de palavras sem nuances, que “é importante não caricaturar o inimigo”. À Atlantic, em 2018, tinha sublinhado que Fauda é “uma série de televisão — não é um manifesto político” e acrescentava que tem como tema forte “a ocupação” sem ignorar a perspectiva palestiniana. No New York Times, no mesmo ano de estreia da segunda temporada, relatava porém que a televisão israelita, e os israelitas em geral, “não querem ouvir falar de palestinianos”. Em Israel, lá se estreou no canal por satélite Yes e em 2016, quando chega à Netflix, torna-se um fenómeno.

Esta série seria sempre um território de disputa e a sugestão do crítico Mike Hale, do New York Times, na altura da estreia da segunda temporada continua a ecoar: “No fim de contas, o ónus de contar o lado palestiniano desta história não deveria cair sobre Rav e Issacharoff. A Netflix tem dinheiro. Está a falar com cineastas em Gaza ou na Cisjordânia?”. Entretanto, avisa o Le Monde, está a ser preparada uma versão que reflicta o conflito entre Índia e Paquistão e o potencial replicante de Fauda não se esgota por aqui. No Brasil, por exemplo, o diário Folha de São Paulo descreve-a como a “Tropa de Elite israelita”.

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