O confinamento na Manhã Submersa de Vergílio Ferreira

Nos últimos dias, já em quarentena, encerrado em ca(u)sa própria, encontrei-me diariamente com Vergílio Ferreira, que me conduziu com mestria pela sua Manhã Submersa.

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Vergílio Ferreira

Vivemos um tempo excepcional, instigado pelo vírus impiedoso que invadiu as nossas cidades, ameaçando o quotidiano que tomamos por garantido. Governantes do mundo inteiro foram obrigados a agir, uns mais lestos que outros, é certo, mas o confinamento, voluntário ou obrigatório, é hoje uma realidade global.

Nos últimos dias, já em quarentena, encerrado em ca(u)sa própria, encontrei-me diariamente com Vergílio Ferreira, que me conduziu com mestria pela sua Manhã Submersa.

O autor de Vagão J, Aparição e Alegria Breve (entre tantas obras literárias de referência) nasceu em Melo, aldeia do concelho de Gouveia, do outro lado da Serra da Estrela, na (minha) perspectiva covilhanense, em 1916. Um professor de liceu que se transformou em ícone da literatura portuguesa do século XX. O seu contributo literário é vasto e inspirador. Em 1943, publicou o primeiro romance, O Caminho Fica Longe. Curiosamente, em 2010, a Quetzal viria a editar A Curva de uma Vida, um manuscrito do seu espólio, datado de 1938, que regista a sua primeira “história”.

Mas foi com O Caminho Fica Longe que Vergílio Ferreira iniciou uma trilogia de romances neo-realistas, onde se incluem Onde Tudo foi Morrendo e Vagão J. Neste último, o autor apresenta a família de António Borralho (A. Santos Lopes, de lei), o jovem que viria a protagonizar Manhã Submersa, romance publicado em 1954, e sobre o qual hoje vos escrevo. A narrativa retrata, entre outras coisas igualmente severas, o confinamento social. Uma obra literária fortemente influenciada pelas vivências do próprio autor, que frequentou o seminário durante seis anos.

Ora, o nosso narrador-herói (identificado sob os pontos de vista narrativos de Timbal-Duclaux) evoca as suas lembranças mais profundas, traçando um fio condutor que nos leva ao seu princípio, ao seu fado, previamente cantado por D. Estefânia, sua protectora, que o encerra no seminário. A personagem que o autor chama a si, criando uma ligação afectiva com o leitor, explora as reminiscências da sua tenebrosa juventude, vivendo enclausurado e em luta interna.

Vergílio Ferreira narra com competência, munido de conhecimento próprio, a vida no seminário nas décadas de 30 e 40. A angústia, a solidão e o temor a Deus e aos padres perfeitos. A incerteza da vocação e os castigos da palmatória. A dúvida constante. O penar facilmente concebível no semblante de António, que se trava de razões pessoais e familiares, maldizendo a própria existência, é cruelmente exposto pela mãe, que a certa altura lamenta a tristeza do filho e se interroga se a morte na infância não teria sido melhor destino.

Há na trama uma descoberta do corpo que é autêntica, percorrida com subtileza, recorrendo o autor a figuras de linguagem, que, de resto, estão bem presentes na sua obra. O apelo sexual, impelido por Carolina, criada de D. Estefânia, é manifestamente criminoso aos olhos de Deus, garantem os padres perfeitos, mas o nosso narrador-herói não encontra a força necessária para escapar ao chamamento pecaminoso. “Mãos fora da cama, sendo possível. De qualquer modo, nunca as encostar ao corpo”, alertava o director espiritual.

É importante ainda referir o contributo de Gaudêncio, amigo e colega de seminário de António, que ao questionar “E se Deus não existisse?” descerra caminho à problemática metafísica que Vergílio Ferreira abraçaria nos livros seguintes, onde se coloca a hipótese de que “Deus não exista”. Um tema fundamental no estudo da vasta obra do autor, como é exemplo o livro de Maria Joaquina Nobre Júlio, O Discurso de Vergílio Ferreira como Questionação de Deus.

Manhã Submersa é de leitura obrigatória para os amantes da literatura portuguesa do século XX. Uma narrativa que obriga a aceitar inconscientemente a personagem-pretexto do autor, e através dela indagar as nossas passadas, expiar os nossos erros e explorar novos trilhos. Nestes dias de quarentena, resistindo à covid-19, quando o isolamento social surge como mal menor, não podemos comparar a nossa missão à de António e de todos os jovens de famílias miseráveis que se encerraram num seminário, em meados do século passado, somente para fugir à pobreza do seu tempo.

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