Deputados polacos debatem proposta para restringir ainda mais o aborto

Uma proposta cidadã que proíbe a interrupção da gravidez até em situação de má-formação do feto vai continuar a ser discutida e votada esta quinta-feira no Parlamento. Confinados, activistas dos direitos das mulheres arranjam novas formas de protesto.

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Activista de direitos das mulheres protesta sozinha contra a nova proposta sobre o aborto, uma vez que os ajuntamentos com mais de duas pessoas estão proibidos por causa do coronavírus AGENCJA GAZETA/Reuters

O Parlamento polaco vai votar esta quinta-feira uma proposta de lei que resulta de uma iniciativa de cidadãos para impedir a interrupção da gravidez por malformação do feto, proibindo na prática o aborto na Polónia, um dos países com uma das leis mais restritivas da Europa. O principal partido do Governo, o Partido Lei e Justiça (PiS), vai votar a favor para que desça à comissão parlamentar, onde deverá ficar congelada, aguardando um momento mais oportuno. 

A proposta de lei cidadã a proibir o aborto por má-formação do feto foi entregue ao Parlamento em 2018, mas a sua discussão e votação foi adiada desde então. O adiamento acontece quando as leis são vistas como inoportunas pelos deputados, mas apenas podem ser relegadas para depois até certo ponto, o que obrigou a Presidente do Sejm (Parlamento), Elzbieta Witek, a marcar a sua discussão e votação para esta quarta e quinta-feira, quando milhões de polacos estão em confinamento por causa da pandemia da covid-19, 

As manifestações foram fundamentais para travar uma proposta semelhante em 2016 e, agora, sem poderem marchar nas ruas, os polacos arranjaram outras formas de expressar o seu descontentamento: andam sozinhos ou fazem protestos com meia dúzia de pessoas, separadas por dois metros, circulam de carro buzinando, hasteiam bandeiras nas suas varandas e janelas e publicam vídeos de protesto nas redes sociais. E online há todo um movimento de protesto, promovido por organizações de defesa dos direitos humanos.

O projecto do aborto foi proposto por Kaja Godek, activista anti-interrupção voluntária da gravidez que tem sido o rosto do movimento contra esta “epidemia que é pior que a do coronavírus”, como a classifica. Derrotada em 2016, depois de grandes protestos, voltou a apresentar uma segunda proposta em 2018. 

Ao contrário da proposta anterior, que impunha penas de prisão e multas às mulheres que fizessem abortos, esta não estipula penas mas proíbe os abortos por malformações do feto, que perfazem 98% das interrupções, de acordo com a imprensa polaca. Na prática, esta lei iria proibir o aborto no país que já tem uma das mais restritivas leis na Europa – apenas o permite em situações de gravidez de risco para a mãe, malformação do feto e fruto de violações ou incesto. 

“Estamos a falar sobre se na Polónia podemos asfixiar um bebé inocente com um parto prematuro, e depois colocá-lo em algum lugar na sala de partos e esperar horas até que morra”, disse esta quarta-feira Godek, aquando da apresentação do projecto aos deputados. “Este é o mérito desta proposta: apagar a possibilidade de algo deste género acontecer a crianças por serem deficientes”, concluiu. O Provedor da Criança polaco, Mikolaj Pawlak, também subiu à tribuna para dizer que “todo o ser humano é uma criança da concepção à idade adulta”. 

Uma das primeiras respostas aos defensores do projecto partiu da vice-presidente do Parlamento e deputada da Plataforma Cívica, Malgorzata Kidawa-Blonska, ao dizer que as mulheres em “situações extremas devem ter o direito a escolher”. “Devemos decidir sobre o que fazer para as mulheres se sentirem seguras, tenham apoio, e não decidir por elas”, afirmou, salientando que as “mulheres são responsáveis”. 

Houve, no entanto, quem usasse palavras mais duras para descrever o projecto como “bárbaro” e o “pico da hipocrisia”. “Acham que somos idiotas? O facto de hoje nos obrigarem a lidar com um projecto desumano, bárbaro, ao qual a maioria da sociedade se opõe, é o pico da hipocrisia e do cinismo”, disse Magdalena Biejat, deputada pela Esquerda Unida. 

A proposta sobre o aborto é uma entre cinco projectos bastante polémicos em discussão e votação no Parlamento. Um proíbe a educação sexual nas escolas polacas, outro proíbe as compensações de pré-guerra (a Polónia tem sido acusada de revisionismo histórico sobre o seu papel no Holocausto), um quarto legaliza a participação de crianças na caça e um quinto altera o salário dos professores. 

As propostas em debate são tão polémicas, principalmente a do aborto, que o Partido Lei e Justiça, próximo da agenda ultra-conservadora do Fidesz de Viktor Orbán, optou por adiá-las até deixar de o poder fazer. No tema do aborto, a divisão no seio do partido é clara: membros da direcção defendem-na, enquanto outros dizem que o partido deve evitar assumir uma posição, pois receiam que o Presidente, Andrejz Duda, o seu candidato às presidenciais de 10 de Maio, possa sair prejudicado nas urnas o partido tem-se recusado a adiar as eleições.

Por isso, o PiS vai votar a favor da proposta para que possa descer à comissão parlamentar, onde ficará congelada até surgir uma melhor altura, para lá das presidenciais, diz a imprensa polaca. No entanto, o Presidente, que tem grandes ligações aos ultra-conservadores, ignorou uma parte do PiS e já disse que promulgará a lei se ela chegar à sua secretária, argumentando que “matar crianças deficientes é simplesmente assassinato”. 

O sucesso eleitoral do PiS tem dependido, a par das reformas à lei eleitoral, de narrativas contra as pessoas LGBT, direitos das mulheres e da chamada “ideologia de género”, expressão usada pela extrema-direita por todo o mundo. “Para eles, é a melhor altura para pagar a dívida que têm aos sectores ultra-conservadores”, disse ao Guardian Barbara Nowacka, deputada da oposição. “Estamos mesmo com medo de que usem o facto de os cidadãos polacos estarem focados no seu futuro e saúde e não em valores, educação sexual e direitos das mulheres”. 

Num momento em que o desemprego aumenta por todo o mundo, derivado das medidas de isolamento social, muitas mulheres polacas confrontam-se com o medo de gravidezes indesejadas. "Muitas pessoas perderam os seus empregos de um dia para o outro e não têm dinheiro até para viver. Para elas, uma gravidez indesejada é o pior cenário”, disse ao jornal britânico Natalia Broniarczyk, da polaca Equipa de Aborto de Sonho, referindo que passou a receber cerca de 550 chamadas de ajuda desde o início do confinamento, mais do dobro de antes da pandemia. 

Apesar das restrições da actual lei, muitas mulheres grávidas nos primeiros três meses têm-na conseguido contornar encomendando comprimidos pela Internet, tomando-os em casa. Este método a que se vêem obrigadas levanta muitas dúvidas sobre a segurança para a saúde. 

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