Será este o momento para discutir a emissão de eurobonds?

O BCE – e não a emissão de eurobonds, por muito apressada que seja – é a chave para ultrapassar a emergência de falta de liquidez para os Estados-membros poderem apoiar as respetivas economias em colapso.

Para evitar dúvidas, começo por declarar que sou a favor da emissão de eurobonds há muito tempo. Mas, como o início do longo processo legislativo europeu depende de uma decisão por unanimidade do Conselho Europeu, composto pelos chefes de Estado e de Governo dos 27 Estados-membros, é de recear que haja sempre uma minoria de bloqueio, em virtude das diferentes culturas e idiossincrasias que a partir do século XVI dividiram a Europa após a Reforma e a Contra Reforma.

Compreendo e solidarizo-me inteiramente com a dura reação do primeiro-ministro de Portugal em defesa da Espanha e Itália face à insensata declaração do ministro das Finanças dos Países Baixos. Mas temos de perceber que, qualquer que seja o nome do ministro holandês, a mentalidade que o formata é aquela que, em hora infeliz, assumiu. Por isso questiono: será este o momento para discutir a emissão de eurobonds, apesar de ser evidente que esta crise afecta todos e sem fronteiras, não é financeira e exige uma resposta comum?

Aparentemente sim, mas a grande dificuldade para o Eurogrupo, presidido por Mário Centeno, e o Conselho Europeu conseguirem um acordo unânime demonstra bem que prevalecem duas visões antagónicas sobre a essência da União Europeia: a ideia de que cada um trata de si e a ideia de que a união faz a força. A dificuldade em conseguir um consenso, mesmo limitado, que evite a rotura e abra caminho para o reforço da unidade europeia veio demonstrar que não é este o momento para insistir na emissão de eurobonds. Por isso, havia agora que usar o que nos une e não deixar o que nos divide dominar a situação nesta crise dramática.

Olhemos em primeiro lugar para o que de positivo se passa a nível Europeu e deixemos para mais tarde a necessidade imperiosa de ser tomada a decisão unânime do Conselho Europeu aprovar a emissão de eurobonds. O primeiro passo é não estragar uma excelente ideia usando-a para distribuir liquidez – a prioridade actual e imediata –, que é a solução inevitável que tem de ser tomada pelo Banco Central Europeu (BCE). Em seguida, chegará o tempo para o Conselho Europeu vir a aprovar a emissão de eurobonds, mas direcionada para financiar a indispensável recuperação e transição económica da sociedade europeia, após o fim desta pandemia, alavancando o Orçamento Europeu até 2027 ou um Fundo Europeu para a Recuperação ou Resgate.

As instituições europeias de cariz democrático – o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia que dele emana – já tomaram decisões importantes que quase passaram despercebidas. A Comissão Europeia já suspendeu o Pacto de Estabilidade e aprovou um pacote de 100 mil milhões de Euros para apoio ao emprego, o BEI presta garantias de 200 mil milhões às empresas, o Parlamento Europeu aprovou a proposta da Comissão de apoio de 37 mil milhões de Euros para equipamentos de saúde e o BCE reforçou com mais 750 mil milhões de Euros a compra aos bancos de ativos para lhes dar maior capacidade de crédito. São sinais importantes, ainda que insuficientes, para o reforço de meios para a luta contra a covid-19, designadamente na área da saúde pública, e para conter a recessão. Se o Conselho Europeu vier a aprovar o recurso ao Mecanismo Europeu de Estabilidade em 240 mil milhões de Euros sem condicionalidade que lembrem a troika, há que reconhecer que a União Europeia demorou mas fez uma prova de vida realista e robusta.

Mas, em situações de guerra, a única instituição que pode atuar sem demoras é o Banco Central, pois tem a capacidade absoluta para criar moeda. Não precisa de reunir o Conselho Europeu e, muito menos, conseguir a unanimidade dos seus membros, para mobilizar liquidez para injectar na economia de cada país membro e evitar a quebra abrupta da procura e o desemprego maciço. Quando se fala em recessão e se arriscam previsões de que pode atingir uma quebra eventualmente de mais de 10% do PIB, estamos mesmo numa emergência que só o instrumento criação de moeda pode contrariar. Nas últimas décadas prevaleceu a ideia de que os bancos centrais devem ser independentes do poder político, para se evitar que sejam forçados a financiar “disparates”. É uma ideia consensual e universalmente aceite, influenciada pela chamada escola economista austríaca, sempre mais preocupada com a inflação do que com o crescimento ou a recuperação económica. Mas há muitos anos que a preocupação que atormenta a Europa é precisamente o crescimento anémico e a baixa inflação, razão que levou o BCE a lançar em 2015 a política de “quantitative easing”, sem que tal tenha gerado inflação. Numa situação de emergência face ao risco de colapso da economia, desemprego galopante e perda de rendimento das famílias, o BCE está perante uma situação de guerra em que tem de prevalecer uma razão maior do que a ortodoxia monetarista.

Aliás, é bom não esquecer que a origem histórica dos bancos centrais está ligada à necessidade de financiar as despesas de guerra, sendo a este propósito útil lembrar a criação do Banco de Inglaterra no século XVII e o livro escrito em 1940 por John Maynard Keynes, How to pay for the war: a radical plan for the Chancellor of the Exchequer, no qual defende a necessidade de recorrer à criação de moeda e a um pouco de inflação para pagar a guerra.

O BCE é hoje o paradigma de independência dos bancos centrais, mas com Mario Draghi demonstrou ter uma forte noção de responsabilidade colectiva, que certamente Christine Lagarde irá manter. Tal como o BCE tem uma linha de emergência (que, em princípio, não deve exceder um ano) para ajudar bancos em dificuldade, a chamada Emergency Liquidity Assistance (ELA), deve também, como prestamista de última instância, criar uma linha especial e temporária de emergency liquidity assistance para os Estados-membros da Zona Euro – o que seria, aliás, um forte incentivo para os países da União que ainda não aderiram à Zona Euro o fazerem – para os ajudar a apoiar as empresas (sem olhar para os ratings, como acontece nos programas de compra de activos do chamado “quantitative easing”) e as famílias afetadas por esta paragem brutal da economia, pois tal permitirá reativar rapidamente a procura agregada. Obviamente, não há risco inflacionista, dada a capacidade de oferta ociosa e que importa igualmente reativar.   

O BCE – e não a emissão de eurobonds, por muito apressada que seja – é a chave para ultrapassar a emergência de falta de liquidez para os Estados-membros poderem apoiar as respetivas economias em colapso, não fazendo qualquer sentido empurrar cada país para emitirem empréstimos condicionados nos mercados financeiros abertos, onde a subida das taxas de juro asfixiaria os mais vulneráveis e liquidaria a confiança entre iguais, que é a base de qualquer parceria, aliança ou união. Assim se ganhará tempo para o Conselho Europeu chegar a um acordo para aprovar a emissão de eurobonds, mas tal deve destinar-se a financiar o relançamento e transformação da economia europeia, que irá demorar algum tempo, tal como o Plano Marshall esteve na base da reconstrução europeia após o final da II Guerra Mundial. E é bom lembrar que o secretário de Estado americano George Marshall, que o criou, ganhou o Prémio Nobel da Paz de 1953 por ter estado na base original da reconstrução da Europa e da criação das primeiras instituições europeias.

Finalmente, se esta parece ser a solução institucional mais correta, então não parece sensato estragar um instrumento essencial da reconstrução europeia, como serão os eurobonds, aplicando-lhe um nome de vírus amaldiçoado. A ideia de lhes chamar coronabonds pode ser mediática, mas é certamente desastroso que, para sempre, um nome tão maldito fique associado à recuperação da economia europeia, que se aproxima após o termo da pandemia.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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