Pandemia e desordem pública

Parece evidente que a crise de saúde produziu uma mudança na perceção social do trabalho das forças de segurança nos mais variados extremos do espectro político, mas existirá ainda algum espaço de legitimidade para questionar as relações entre a repressão ao protesto e a securitização da saúde pública? Ou são os vírus, necessariamente, contrarrevolucionários?

Como nas grandes revoluções, a pandemia impõe o seu próprio calendário. Daí que pareça tão longínqua a vaga global de levantamentos populares que, desde Hong Kong até ao Chile, passando pelo Irão, Itália, França, Equador, Líbano ou Haiti, levaram a imprensa internacional a batizar 2019 como o ano do protesto de rua [1]. Conforme avançam as quarentenas, o contraste entre as multidões e as ruas vazias estende-se como um filtro vintage sobre a memória dos levantamentos populares e, também, sobre os estados de exceção declarados para enfrentá-los. Inclinando a balança para o lado dos segundos, a vaga global de estados de emergência, alerta, calamidade, sítio e exceção propriamente ditos silenciaram as ruas com níveis de apoio social impensáveis, por razões óbvias, a apenas alguns meses atrás.

Ao mesmo tempo, a omnipresença das forças de segurança nas diferentes cidades e Estados é-nos familiar, como se não houvesse uma grande distância entre o cenário atual e o da repressão à desordem pública. Pensando nessa dissonância, e levando a sério a tradição da teoria crítica que, de Walter Benjamin a Jasbir Puar, nos alerta sobre a propensão de qualquer estado de exceção para converter-se em norma, vale a pena perguntar: em que estado se encontra a normalização desta onda global de estados de exceção? Parece evidente que a crise de saúde produziu uma mudança na perceção social do trabalho das forças de segurança nos mais variados extremos do espectro político, mas existirá ainda algum espaço de legitimidade para questionar as relações entre a repressão ao protesto e a securitização da saúde pública? Ou são os vírus, necessariamente, contrarrevolucionários?

Securitarismo sanitário

Como primeira aproximação, note-se que a resposta securitária à crise de saúde parece estar longe de ser improvisada. Isto seria, ao menos, o que parece sugerir o fato de em setembro de 2019 terem sido divulgadas as diretrizes do Conselho Mundial de Monitorização da Preparação [2], um organismo dependente da OMS e do Banco Mundial, dirigidas aos governantes de todos os países perante o risco de libertação de um vírus respiratório de elevada transmissibilidade devido a causas naturais, acidentais ou deliberadas que poderia matar milhões de vidas e retardar a economia mundial em até 5%. Apenas dois meses depois, diferentes governos começavam uma espécie de competição para levar à prática as diretrizes de segurança sanitária global da OMS, na forma de confinamentos compulsivos, recolher obrigatório e uma militarização crescente do espaço público, entre outras respostas à crise da covid-19. Certamente, é possível que a influência global do Conselho acima mencionado seja secundária, e que as recomendações de organismos tão influentes como a Fundação Gates, a Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos, o Centro Chinês para Controle e Prevenção de Doenças, ou as companhias de seguros privados do Chile que o integram se limitassem a refletir uma espécie de senso comum em matéria de resposta às crises sanitárias.

É inegável, em qualquer caso, que as suas preocupações correspondem muito bem a um cenário em que a mobilidade de pacientes entre países vizinhos enfrenta sérias limitações enquanto que o Exército dos EUA envia tropas para toda a Europa em coordenação com a OMS [3] sem encontrar nenhum tipo de obstáculos. Os diferentes governos, por sua vez, parecem ter tido pouca dificuldade em aderir a um paradigma securitário no qual encontram uma estratégia de compensação, material e simbólica, pelas deficiências da resposta em termos de serviços de saúde. O atraso das medidas implementadas, em particular, parece ser um dos principais motores do autoritarismo direcionado à população, o que também contrasta fortemente com a timidez demonstrada em colocar o setor privado ao serviço da saúde pública.

Sobre estas premissas, o estado de exceção demonstrou-se capaz de estender a sua lógica inóspita à relação social, traduzindo divisões sociais em diferentes graus de isolamento, de exposição ao risco de contágio ou outras violências implícitas na dimensão territorial das quarentenas. Os dias alternados em que homens e mulheres podem andar pelas ruas do Peru ou do Panamá são um exemplo gráfico, entre outras coisas, da maneira de colocar em risco parte da população trans. Igualmente ilustrativa é a situação dos povos indígenas e afrodescendentes da América Latina, que enfrentam a covid-19 em condições de vulnerabilidade que são seriamente agravadas pelo destacamento das forças armadas em seus territórios, como já denunciaram mais de cem organizações de Equador, Colômbia, Brasil, Argentina, Chile, Venezuela, México, Uruguai, Guatemala, Paraguai, Panamá, Honduras, República Dominicana, Haiti e Bolívia [4].

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Em Outubro, a violência tomou conta das ruas de Santiago do Chile: meses depois, um vírus tudo mudou REUTERS/HENRY ROMERO

No caso da Espanha, que se tornou um dos epicentros da tempestade sanitária e, também, da securitária, o contraste entre a quarentena com despesas pagas de turistas em hotéis de Tenerife e o assédio policial às famílias ciganas em La Rioja marcou o tempo de uma quarentena em que as variáveis raciais e de classe se adaptam com uma rapidez notável às novas coordenadas biopolíticas. Pensemos, por exemplo, no contraste entre os voos de repatriação e os das deportações após o fechamento das fronteiras, ou as queixas de aumento da pressão policial nos bairros de migrantes e periféricos. Ou na fratura, comum aos confinamentos obrigatórios dos diferentes Estados, entre quem teletrabalha, conhecendo novas formas de exploração laboral, ou quem enfrenta um novo mundo de riscos laborais por trabalhar fora de casa ou em atendimento ao público. Sem esquecer o fosso que se abre entre quem entra nos cálculos extraordinários do governo, com maior ou menor sucesso, e quem permanece sempre à margem, como as trabalhadoras do sexo.

Ao mesmo tempo, a lógica belicista permitiu atribuir uma aura de civismo à estigmatização inicial da população de origem asiática, que se alastrou até formar um panóptico social de escrutínio do outro com um profundo ar moralista. Em Portugal, as redes sociais proporcionavam um bom exemplo quando se partilhavam fotos falsas das filas de trânsito na Ponte 25 de Abril, denunciando a irresponsabilidade de quem supostamente se deslocava para as praias da Caparica. No caso espanhol, ninguém se incomoda com a irrupção da polícia num domicílio privado onde se teriam reunido várias pessoas para ter sexo, enquanto reunir-se para assistir à missa continua a ser perfeitamente legal. Até a preocupação com a proteção da terceira idade se tem visto gravemente minada pela negligência letal de lares privados ou pelas pedras atiradas a um autocarro que transportava idosos para uma residência em La Linea (Cádiz). Nesse contexto, não surpreende que sejam elaborados protocolos que apontem o “valor social” da pessoa doente [5] como critério de admissão em unidades de cuidados intensivos, convidando profissionais de saúde a aderir à moral de exceção própria de estados totalitários.

O espaço de protesto

Seria um erro ignorar os modos através dos quais irrompe o espírito de cooperação, contra ventos e marés, no contexto de crise. O seu rasto é evidente na disposição de profissionais de saúde a trabalhar em condições de risco devido à falta de recursos, na produção em rede de materiais de proteção ou na organização ativista e de bairro para suprir as faltas a que os serviços sociais dizimados pela ainda recente vaga de cortes não conseguem dar resposta, para citar apenas alguns exemplos. No entanto, é possível que o nosso relacionamento geral com a pandemia tenha muito menos a ver com solidariedade do que com os mandatos de uma moral de exceção baseada no medo, na submissão à autoridade e na construção do outro como ameaça. Se não, para ilustrar este ponto, veja-se que o número de imigrantes mortos no Mediterrâneo desde 2014 excede o de mortes por covid-19 em Espanha e Itália no final de março [6], sem que essa situação pareça ter-nos tirado demasiado o sono. O contraste entre a nossa tolerância para uma resposta institucional que, num caso, criminaliza os salvamentos e no outro leva a precauções extremas, não fala muito bem da nossa empatia com a população mais vulnerável. E fala alto e bom som do império de uma moral de exceção chamada racismo.

Esse último contraste está relacionado, na minha opinião, com uma dimensão metafórica da doença e da morte que, como Susan Sontag explica em relação à sida, excede em muito o campo estritamente sanitário. No caso da covid-19, a ameaça de pandemia é apresentada como uma guerra contra o mal absoluto, divorciada de qualquer ponto de referência em comparação com outras doenças, outras pandemias e outras tragédias humanitárias. A ausência de pedagogia epidemiológica é notória no discurso dos media, ajudando a criar um sentimento de pânico muito favorável ao refúgio autoritário. Como resultado, a pressão causada pela pandemia reduz a nossa capacidade de pensar em outras alternativas possíveis, compensando com excessos a perda de confiança nas instituições indicada nas diretrizes do referido Conselho como um obstáculo a ser superado em períodos de alerta sanitária.

Sem dúvida, a desconfiança existe. Tem as suas raízes no ciclo iniciado pela Primavera Árabe e estende-se a revoltas muito mais recentes. E parece ser bastante justificada, pelo menos considerando que a violência do Estado em resposta a esses protestos veio apoiar a panóplia de processos de ajustes, cortes e privatizações que levam à estreita margem de manobra com a qual enfrentamos a atual crise. Nesse sentido, o avanço da agenda neoliberal é o pano de fundo que explica o prolongamento do primado do securitarismo desde os cenários de repressão do protesto público até aos da pandemia. Em outras palavras, o autoritarismo patenteado na defesa da ordem pública e da segurança da saúde global fazem parte do mesmo estado de exceção, que também se estenderá, previsivelmente, durante um austericídio pós-covid-19 no qual perderemos, literalmente, a conta das vítimas. Enquanto durar, discutiremos sobre meios e estratégias, sobre a melhor maneira de nos protegermos e às mais vulneráveis ​​entre nós, sobre como articular a condenação da violência com a urgência de contestá-la. A batalha decisiva, no entanto, será aquela que travarmos para recuperar o espaço do protesto.

[1] Sharon Yi, J., Caryl, C, The Year of the Street Protest, The Washington Post, 10 de dezembro, 2019.
[2] Global Preparedness Monitoring Board., A World at Risk,  Annual report on global preparedness for health emergencies Actions for leaders to take, World Health Organization, Geneva, 2019.
[3] NATO, Defender Europe-20, Health and Welfare are Priority, SHAPE Public Affairs Office, 23 de março de 2020.
[4] Llamamiento de los pueblos originarios, afrodescendientes y las organizaciones populares de América Latina, 6 de abril de 2020.
[5] Semicyuc, Recomendaciones éticas para la toma de decisiones en la situación excepcional de crisis por pandemia covid-19 en las unidades de cuidados intensivos, Sociedad Española de Medicina Intensiva, Crítica y Unidades Coronarias, 2020, p. 12.
[6] ONU News, “Mais de 20 mil migrantes morreram em travessias no Mediterrâneo desde 2014”, 6 de março de 2020.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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