Geopolítica do coronavírus

A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais dependente em simultâneo?

Analisemos três questões sobre o mundo que aí vem: as novas ameaças, a crise das organizações internacionais e o papel dos Estados.

Perante novas ameaças, novas estratégias

As questões de política internacional costumam distinguir-se entre alta e baixa política. A alta política diz respeito à sobrevivência e segurança dos Estados; a baixa política, a tudo o resto (como o comércio ou a cultura). Esporadicamente, alguns temas de baixa política adquirem relevância estratégica e passam a considerar-se de alta política, num processo designado por ‘securitização’. A pandemia veio transformar a saúde pública numa área de alta política. No entanto, ao contrário de ameaças clássicas como as militares, a proteção contra as pandemias não requer o exercício de poder sobre outros Estados, mas com outros Estados. A saúde pública não é um bem privado, coletivo ou de clube, mas de rede.

Os bens privados são aqueles que um Estado possui em exclusividade e de cuja utilização pode excluir terceiros. É o caso de um porta-aviões nuclear.

Os bens coletivos são aqueles que um conjunto de Estados produz mas de cujo usufruto não pode excluir terceiros. As regulações marítimas e a estabilidade financeira internacional são bons exemplos. Os bens coletivos geram incentivos para a defeção (ou seja, para não pagar por eles porque se lhes pode aceder de qualquer forma). Para isto há duas soluções: uma consiste em monitorizar e punir a defeção; outra em aceitá-la. Puni-la requer autoridade, aceitá-la requer liderança. A liderança consiste na decisão de um país ou grupo de países aceitar pagar um custo desproporcionado (mas ainda assim conveniente) pela produção do bem coletivo. Os Estados Unidos cumpriram até há pouco esse papel, mas deixaram de o fazer.

Os bens de clube são aqueles que um grupo de Estados possui em exclusividade e de cujo usufruto pode excluir terceiros. Um exemplo pode encontrar-se na ação de organizações regionais, as quais defendem prioritariamente os seus membros. Pertencer tem os seus privilégios. 

Os bens de rede são aqueles cuja utilidade aumenta com a sua difusão: quanto mais usuários os possuam, melhor para todos. O exemplo mais elucidativo são as vacinas e a imunização em geral. Não é indiferente a cada país que os outros estejam sãos ou doentes: convém-lhes que estejam sãos, seja por razões sanitárias, seja por razões económicas.

Quando o objetivo é que todos tenham algo, a estratégia apropriada é a cooperação e não a competição. As novas ameaças são ‘males de rede’, cuja capacidade de dano aumenta com a sua difusão. Não existindo liderança internacional clara, enfrentá-las exige cooperar em rede mais que em clubes.

A crise das organizações internacionais

O efeito paradoxal da pandemia é que, embora a sua superação exija cooperação internacional, o seu combate imediato incita ao isolamento nacional. O impacto destes incentivos cruzados sobre as organizações tem sido assimétrico: embora quase nenhuma tenha estado à altura, as organizações políticas responderam pior que as técnicas. Assim, as Nações Unidas (ONU) têm tido um papel secundário, enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) se constituiu como referência para a maior parte dos Estados. A nível regional aconteceu algo semelhante: enquanto a resposta dos órgãos políticos da União Europeia (UE), a Comissão e o Conselho, tem sido controversa e insuficiente, a do Banco Central Europeu (BCE) foi inicialmente deficiente mas posteriormente corrigida. E é do BCE, em última instância, que depende a sobrevivência do Euro, cuja implosão poderia ser uma sequela mortífera do coronavírus.

Duas lições podem retirar-se desta experiência. A primeira é que a cooperação técnica se mostrou mais útil e mais efetiva que a cooperação política. A segunda é que a bifurcação entre as dimensões política e técnica poderá dar lugar a uma globalização ‘desacoplada’, em que as esferas de influência dos Estados Unidos e da China não se distinguirão por alinhamentos ideológicos, mas regulatórios, com padrões técnicos e desenvolvimentos tecnológicos incompatíveis. Podemos estar a caminho de um mundo dividido não entre liberalismo e autoritarismo, mas entre algo tipo “Mac y PC”, no qual ficar de fora ou jogar ao meio não seja uma opção. A eleição de qualquer dos dois tem um preço, porque os Estados Unidos continuarão a controlar a divisa global enquanto a China definirá preços e decidirá investimentos.

O papel dos Estados

A pandemia não afeta todos igualmente, porque o contexto local bifurca os impactos globais. Os países desenvolvidos enfrentam uma dupla crise: sanitária e económica. Mas a crise nos países menos desenvolvidos é tripla: sanitária, económica e social. A informalidade dos mercados laborais e a precaridade dos Estados de bem-estar multiplicam as penúrias e dificultam as soluções. Embora a resposta à emergência exija mais Estado, as capacidades estatais não se constroem à pressa. O Estado não apenas cuida; também pode esmagar – por ação quando é totalitário, por omissão quando é débil.

A pandemia incentivará o fortalecimento do poder estatal, do qual existem dois tipos: o despótico e o infraestrutural. O poder despótico é a capacidade do Estado para atuar coercivamente sem restrições legais ou constitucionais. O poder infraestrutural é a sua capacidade para penetrar na sociedade e organizar as relações sociais. Uma vez mais, trata-se da distinção entre o poder sobre os outros e o poder com os outros. Os Estados mais eficazes serão aqueles que mais cedo operem uma abertura inteligente, e não aqueles que mais marcialmente mantenham o encerramento.

O retorno do Estado não implica necessariamente o retorno do nacionalismo. O Estado é um instrumento (de ação coletiva), a nação é um sentimento (de pertença coletiva). A eficácia do Estado é independente da emotividade excludente do nacionalismo – embora a emotividade não excludente do patriotismo seja sempre benvinda.

A pandemia veio reforçar o poder dos Estados ao mesmo tempo que aumenta a sua interdependência. Como pode ser-se mais forte e mais dependente em simultâneo? Este é o paradoxo da interdependência: a capacidade de um Estado não aumenta com o isolamento, mas com a gestão inteligente dos fluxos com o exterior, sobretudo dos bens de rede (poder com outros).

As ameaças do futuro envolvem a rivalidade geopolítica e a competição tecnológica: sem cooperação, as perspetivas do mundo que vem são sombrias. Porque as necessidades do futuro incluem melhores capacidades estatais, menos nacionalismo e mais cooperação internacional funcional: científica, sanitária e financeira. E, desejavelmente, mais democracia – mas este é já um juízo normativo.

Helena Carreiras é directora do Instituto da Defesa Nacional. Andrés Malamud é investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico​

Sugerir correcção
Ler 2 comentários