O Norte: esse inculto desconhecido

Eu já vejo pouca televisão e já não assistia a nada da TVI. Doravante, por absoluta incapacidade intelectual de entender tão excelso e culto canal, não mais carregarei no número 4 no comando.

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PAULO PIMENTA

Há já algum tempo escrevi aqui no PÚBLICO sobre um vírus que existe há séculos na sociedade portuguesa e não só: a ideia de alguns habitantes da capital de um qualquer Estado serem superiores aos seus concidadãos. Na altura, alguém observava, fazendo-se eco de muitos outros, que a Agência Europeia do Medicamento não tinha ficado sediada em Portugal por se ter candidatado uma “cidade provinciana”.

Acho que um país tão pequeno quanto o nosso, com tradição universalista atestada pela sua História, devia libertar-se de vez deste mesquinho pensamento. Agora foi a TVI a tentar perceber porque há mais casos de covid-19 no Norte, concluindo, entre o mais, que aqui as pessoas são menos educadas e mais pobres. Parece que o/a jornalista que assina a peça – nem fui ver quem era, nem me interessa – está a conseguir, em tempo supersónico, responder a uma inquietação que todos temos e que, por certo, será objecto de estudo de cientistas de várias áreas. Mas há meios de comunicação social que se arvoram a qualidade de oráculos e que constroem “verdades” próprias.

Podia desfiar aqui um rosário de números, desde as médias mais altas de vários cursos do ensino superior estarem a Norte, na triste coincidência de um dos maiores cérebros nacionais, Maria de Sousa, nascida em Lisboa – hoje falecida e a quem rendo sentida homenagem – ter sido catedrática da Universidade do Porto, até à percentagem do PIB produzida no Norte, com dados da indústria, com o sucesso turístico de muitas cidades desta zona do país.

Podia ir mais atrás, recordando tantos ínclitos filhos e filhas que estas terras já deram a Portugal, eventos históricos como as guerras liberais, o coração de um rei que ficou no Porto, em agradecimento, a invencibilidade da cidade, o seu dinamismo, o afecto que aqui se sente.

Enfim, poderia fazer tudo isso, obviamente descontando a subjectividade de ser portuense e amar a cidade onde vivo e trabalho. Como amo todos os espaços de Portugal que conheço. E do estrangeiro, pois é cómico, num tempo de globalização, este apontar de dedo paroquial e serôdio, em que a pandemia não escolhe Estados, estratos sociais ou culturais. Não consta que um doutorado morra menos que um analfabeto.

E se se diz que o Norte é a zona mais pobre do país, não só se incorre em mentira, como também é verdade que aqui se não fixa tanta riqueza como devia, desde logo por cá se produzir bastante, em virtude de inconcebíveis políticas públicas centralistas.

Votei contra o referendo da regionalização, mas em face de um concreto projecto com o qual concorde, votarei a favor. Não por qualquer despeito, mas por entender que esse é o melhor caminho para as várias regiões do nosso amado país. De facto, não nos venham mais com a cantiga da descentralização e da desconcentração. Está provado que o sistema está tão enquistado que não vamos lá assim. Costa, que foi um excelente autarca, sabe bem disso e, mais tarde ou mais cedo, a possibilidade aberta pela Constituição será uma realidade.

Podia acabar com um belo poema de tantos e tantas mestres das letras do Norte. Podia acabar dizendo que me irrita solenemente que se ache que o “Norte” é o Porto e vice-versa, quando estas terras são compostas de muitas cidades, vilas, aldeias e lugares. Cada uma delas com as suas especificidades. Podia acabar com o sorriso de perceber que quando se censura – e bem – que o compasso tenha passado de boca em boca em alguns locais, nas entrelinhas se pense e diga que isto tem que ver com uma maior religiosidade atribuída ao Norte. E quem tem fé é parolo, inculto, sem educação. Curioso, numa época em que a Humanidade vai percebendo que o divino é por natureza universal e que em nada contende com a inteligência: Fé e Razão não são dicotómicas, mas complementares.

Podia acabar com um convite aos autores da reportagem e a todos os meus compatriotas que dizem mal do que não conhecem para nos visitarem, às várias cidades que compõem o Norte geográfico. Tenho um quarto de hóspedes com duas camas, sempre ao dispor.

Mas não, acabarei apenas com a verificação de que a estupidez, a falta de preparação e o não saber estar não conhecem geografias. Gosto muito de Lisboa, sei que ela não é o Sul, conheço razoavelmente bem todo o nosso belíssimo país, do Minho ao Algarve, passando pela Madeira e pelos Açores. Dividir as pessoas numa fase de especial debilidade é a coisa menos inteligente do mundo. Como dizemos cá (e em tantas outras partes do país), “quem não se sente não é filho de boa gente”. Eu já vejo pouca televisão e já não assistia a nada da TVI. Doravante, por absoluta incapacidade intelectual de entender tão excelso e culto canal, não mais carregarei no número 4 no comando.

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