Deixei o meu coração em África

Sem termos escolha, assumimos, agora, por imperativo cívico, a efémera condição de refugiados domiciliários, em angustiada quarentena, contrastando com os (verdadeiros) refugiados.

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As duras contingências com que a humanidade, inesperadamente, se depara não salvaguardam nada nem ninguém. Neste intervalo de tempo no nosso tempo, em que o mundo parece ter parado, todos, para sua segurança, estão obrigados a viver confinados às suas circunstâncias. Motivados pelo estado de emergência que ecoa por todo lado, muitos se têm deparado com o abandono forçado, deixando os seus corações noutros lugares.

O meu e o de muitos outros portugueses ficou em Moçambique.

Escolher onde viver, trabalhar, fazer voluntariado, namorar era, até hoje, para nós, cidadãos deste mundo global em movimento, um privilégio. Sem termos escolha, assumimos, agora, por imperativo cívico, a efémera condição de refugiados domiciliários, em angustiada quarentena, contrastando com os (verdadeiros) refugiados que, dificilmente, terão um lar onde se possam recolher ou que os possa acolher, hoje e provavelmente num futuro sem tempo. E se eles não podem regressar aos seus países, nem mesmo em cenários universais de pandemia como a que, actualmente, se vive, muitos dos que se deslocaram nos últimos tempos puderam fazê-lo livremente e em segurança.

Não há bem maior do que a liberdade, um direito que não cabe a todos, começando pela liberdade de escolha. Optar por partir ou por ficar foi para muitos dos portugueses, actualmente espalhados pelo mundo, uma decisão difícil de tomar.

Deixar o seu trabalho, a sua casa, os seus amigos, de uma forma não planeada, no local que se elegeu para viver, singrar e, até, amar jamais deveria ocorrer. Partir na incerteza de não saber quando, ou se, é possível regressar, não se deseja. Como não se deseja sentir o olhar apreensivo de quem fica e que olha para quem parte com preocupação e desconforto, porque, decerto, permanecer não é de todo uma coisa boa, o que remete, inevitavelmente, para uma mútua sensação angustiante de abandono.

Estas visões enganadoras dos factos são sempre redutoras e, com frequência, injustas e dolorosas.

Nos tempos próximos, inevitavelmente vamos permanecer mais nos nossos locais de origem, que acreditámos serem mais seguros para nos abrigarmos, no seio da família e dos amigos, o que não nos impede de sentirmos o premente desejo de voltar e de recomeçar, que jamais será refreado pelos novos horizontes locais e temporais que se estão a erguer perante todos nós. Temos a esperança de virmos a ser bem recebidos, quando voltarmos aos locais em que escolhemos viver, com a certeza de que nada será como antes. Teremos de reaprender a conciliar as nossas vidas, a encontrarmos outros contextos, outras gentes, porque, muito provavelmente, muitos dos que deixámos já não estarão lá.

Vim, há dias, de Moçambique e, como escreveu Manuel Arouca, “deixei o meu coração em África”.

* Deixei o meu coração em África – título de uma obra de Manuel Arouca

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