Rodrigo e Mathilde viajam com os filhos todos os dias pelo mundo. Em casa, recriam países e sonham

O casal luso-francês, amante do ar livre, cria cenários todos os dias nas divisões do apartamento para viajarem com Pablo (3 anos) e de Salomé (6). “Viajamos, fazemo-los sonhar. Uma das primeiras coisas que nos perguntam mal acordam é ‘onde é que vamos hoje?’.”

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Ingredientes: um apartamento (de preferência sem varanda), uma família em confinamento a marinar há alguns dias, duas crianças irrequietas (de três e de seis anos ou de idades semelhantes), um casal que gosta mais de estar lá fora do que cá dentro, uma máquina fotográfica ou smartphone, equipamento desportivo (facultativo) e imaginação q.b. Modo de preparação: junta-se tudo numa das divisões da casa; envolve-se até o cenário estar pronto; tira-se a fotografia; serve-se no Instagram com uma legenda a gosto.

No dia seguinte a ter sido decretado o confinamento em França — tudo começou no dia 17 de Março, data entretanto prolongada por Emmanuel Macron até dia 11 de Maio —, a conta de Instagram que desde sempre existiu para guardar as memórias das aventuras em família passou a servir para guardar as memórias das aventuras em família... dentro de casa.

E as coisas, diga-se, nem mudaram assim tanto. Continua a haver fotografias dos acampamentos selvagens, das lições de ski, dos mergulhos e do snorkeling, das peripécias do canyoning e dos trilhos de cicloturismo, das aulas de yoga, dos desafios de badminton, dos passeios e da comida do mundo.

"Fomos esquiar às Dolomitas"
"Fomos esquiar às Dolomitas"
"Fomos esquiar às Dolomitas"
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"Fomos esquiar às Dolomitas"

No dia 18 de Março foi publicada a primeira foto. “Os miúdos estavam a correr de um lado para o outro e eu disse ‘vamos fazer como se fôssemos para a piscina’. E a Mathilde, por piada, tirou fotos como se estivessem na praia a apanhar sol, com um crocodilo insuflável e o guia da Córsega, onde tínhamos pensado ir de férias”, conta à Fugas Rodrigo Barbosa, que decidiu publicar essa viagem virtual no Insta. “Pensamos que era giro e uma forma de os ocupar. Devíamos fazer uma viagem por dia”. Seja.

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"Uma volta de SUP para aproveitar o bom tempo na Bretanha"

Estava encontrada a base da receita. O palco é um apartamento num segundo andar de um prédio de três andares em Croix Rousse, uma das colinas de Lyon e zona das antigas fábricas de tecelagem. “O apartamento é um recuperado canut, com um pé direito altíssimo onde os trabalhadores tinham as máquinas de tecelagem”, descreve Rodrigo, com uma sala enorme, janelas rasgadas, muita luz e com uma mezzanine perfeita para produções fotográficas e planos picados (como o stand-up paddle algures na Bretanha no dia 20 de Março e o mergulho à procura de peixes estranhos na Grande Barreira de Coral australiana no dia 1 de Abril). “É uma das maneiras que encontramos de aliviar o quotidiano, uma brincadeira que agora é o nosso desafio quotidiano”, sorri este lisboeta, jornalista a trabalhar com a Euronews (sede em Lyon) desde 2004.

"Em directo de Nova Deli: o frente a frente entre os campeões mundiais de badminton, Kendo e Pusarla"
"Um salto ao outro lado do Atlântico para aprender curling com os campeões do mundo"
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"Em directo de Nova Deli: o frente a frente entre os campeões mundiais de badminton, Kendo e Pusarla"

Para os adultos, a sensação de estar enclausurado, com o mundo à volta transformado numa verdadeira pandemia, é “estranhíssima”. “Temos a informação da quantidade de mortos à nossa volta. Mas vivemos neste isolamento em que tudo parece calmo no nosso bairro e à nossa volta. Trabalhamos em casa e, como a maior parte das pessoas, não atravessamos a cidade. Por isso, não temos a noção. Temos um hospital aqui perto, mas nem esse movimento nós vemos.”

Rodrigo e a companheira francesa Mathilde Monges têm a sensação de estar a “viver uma pausa na história”. “Mas sem nos apercebermos da verdadeira realidade”, aponta Rodrigo. “Mas o facto de termos que gerir o quotidiano com dois miúdos pequenos, com o teletrabalho e a escola à distância e tudo, os dias parecem passar a correr.”

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"Visita aos guardiões do farol de Neist Point, na ilha de Skye"

Salomé tem seis anos. Pablo três. Têm escola de manhã, ginástica no YouTube “para os cansar” e uma saída de uma hora por dia autorizada pelo governo francês — Salomé ainda ouve um podcast em francês que conta a actualidade aos mais pequenos e “vai seguindo algumas coisas do coronavírus”. “Pensei que eles tivessem vontade de sair com mais frequência. Habituaram-se ao ritmo e não colocam muitas questões existenciais”, constata Rodrigo, atribuindo essa ordem ao facto de terem “os pais por perto”. “Essa segurança é uma vantagem em troca do sacrifício de não verem os amigos”, aponta. A “foto do dia”, normalmente realizada da parte da tarde, é mais um ponto positivo nesta equação chamada covid-19.

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"À descoberta de spots de canyoning nas Ilhas Baleares"

A família criou uma nota no telemóvel com ideias de “viagem”, que acontece pela hora do lanche ("para publicar pela hora do jantar"). Familiares e amigos acompanham tudo como se tratasse de uma viagem das antigas. Rodrigo e Mathilde sempre viajaram muito “de mochila às costas” e “mais lowcost por opção”. E tanto Salomé como Pablo começaram a fazer caminhadas a partir dos dois anos. Há dois anos, Rodrigo — que já foi visto (no Instagram) a carregar Pablo às costas numa mochila, em plena montanha, no mundo real — foi fazer campismo selvagem com a filha na zona de Beaufort, em Pierra Menta, uma montanha “que tem um cume em forma de faca apontada ao céu”. “Dormimos no Lago do Amor na base de Pierra Menta. Quando chegámos ao refugio de montanha, a dois mil metros de altitude, as pessoas até ficaram surpreendidas por estar lá uma miúda tão pequena”, conta.

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Normalmente, a família passa "muito tempo fora"

Passavam “muito tempo ao ar livre” ("sinto falta de Portugal e do mar, mas tenho montanhas enormes que em Portugal não tenho"). Começaram a fazer cicloturismo em família há dois anos. Uma coisa “menos ambiciosa” no primeiro ano ("porque a Salomé pedalava pouco") pela ciclovia ao longo dos canais entre Lyon e Dijon. Algo “mais ambicioso” este ano ("já com a Salomé a fazer algumas etapas sozinha” e com Pablo a ser puxado no carrinho) entre Lyon e “uns amigos” na Suíça, perto de Basileia.

Ao terceiro dia de confinamento foram esquiar às Dolomitas, em Itália. Ao quinto dia foram ver um filme de terror (e comer pipocas) em Hollywood. Ao sétimo dia foram aprender a jogar curling ao Canadá. Ao oitavo dia fizeram um retiro de meditação no Tibete. Ao nono fizeram canyoning nas ilhas Baleares. Ao décimo pescaram salmão na Noruega. Ao 11º dançaram o Lago dos Cisnes em São Petersburgo. E ao 13º dia de confinamento descansaram num abrigo na Suíça ("depois de um longo passeio de raquetes de neve, nada melhor que um serão num chalé à volta de um fondue").

"Em pleno safari na Namíbia"
"Uma pausa de meditação no Tibete"
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"Em pleno safari na Namíbia"

“O fio condutor é um destino diferente para cada dia”, sublinha Rodrigo, que assim aproveita para manter algumas dinâmicas familiares. Se à quarta-feira é dia de comer hambúrgueres e batatas fritas numa rulote ali na vizinhança, no 17º dia de confinamento monta-se o estaminé na sala e vai-se num instante a Nova Iorque. “Passámos a manhã inteira a desenhar e a pintar”.

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"Testámos o melhor food truck em Nova Iorque!"

“Preparamos as coisas e pegamos no Pablo ao último momento para o equipar e dar uma ou outra indicação”, diz Rodrigo, sorrindo perante a “capacidade de concentração” do mais novo que “não dura mais do que cinco minutos”. “A Salomé gosta mais de ser actriz e de alinhar no jogo”.

Normalmente, a família passa “muito tempo fora”. Aí, escusa “criar cenários”. É tudo natural. Enclausurada, serve-se da imaginação e dos muitos objectos que noutras circunstâncias os ajudam a vencer dificuldades e obstáculos. “Costumo dizer que sou minimalista dentro de casa, mas tenho os ‘brinquedos’ todos”, diz Rodrigo. Bicicletas, pranchas, capacetes, raquetes, esquis, arneses, apetrechos disto e daquilo, adereços num palco.

“Em vez de jogar 50 vezes o mesmo jogo com os miúdos, viajamos, fazemo-los sonhar. Uma das primeiras coisas que nos perguntam mal acordam é ‘onde é que vamos hoje?’.”

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"À procura de peixes estranhos na Grande Barreira de Coral"
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