Carta ao Governo abre guerra entre FPF e Liga de clubes

A entidade que organiza os campeonatos profissionais enviou um ofício ao Executivo a solicitar medidas de urgência para o futebol. Federação e Sindicato dos Jogadores lamentam não ter sido consultados. Órgão liderado por Pedro Proença justifica-se com “falha de comunicação”.

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Fernando Gomes fez saber ao Governo que não gostou da atitude unilateral da Liga LUSA/ANTÓNIO PEDRO SANTOS

Estão cada vez mais tensas as relações entre os organismos de topo do futebol nacional. O mais recente episódio envolve uma carta enviada pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) –​ que representa os clubes da I e II Liga – ao Governo a solicitar um conjunto de medidas de urgência para minimizar os efeitos da crise do novo coronavírus. A Federação Portuguesa de Futebol (FPF) e o Sindicato de Jogadores já lamentaram esta iniciativa unilateral junto do Executivo, garantindo não terem sido ouvidos.

Informados pelo próprio gabinete do secretário de Estado da Juventude e Desporto, João Paulo Rebelo, do conteúdo do documento assinado por Pedro Proença, os dois órgãos criticaram a atitude pouco transparente do presidente da Liga. “Foi com alguma surpresa que tomámos conhecimento do conteúdo [do ofício da Liga]”, admitiu Fernando Gomes numa carta dirigida ao titular da pasta do desporto, na última sexta-feira, a que o PÚBLICO teve acesso.

“Foi preocupação da direcção da FPF, ainda antes da declaração oficial do estado de emergência, constituir um grupo especial de acompanhamento da evolução da pandemia de covid-19 em Portugal”, prosseguiu o líder federativo, salientando que a Liga integrava estes trabalhos, numa lógica que inclui “todo o edifício do futebol”.

Propostas da Liga

No ofício enviado por correio electrónico ao Governo a 4 de Abril, consultado pelo PÚBLICO, a Liga apela à adopção de um conjunto de “medidas excepcionais e temporárias de protecção do futebol profissional”, que tenham em conta a especificidade deste sector da economia. “Um leque de questões para cuja resposta se torna imperativa a intervenção do Governo e da Assembleia da República, enquanto titulares do poder legislativo em Portugal”, refere Pedro Proença.

Entre as “normas especiais” propostas conta-se o alargamento “extraordinário” do período legal de 12 meses para o termo da época desportiva, tendo em linha de conta os efeitos da actual suspensão das competições. Pretende-se também que seja fixada uma data de início das provas da temporada 2020-21 tendo em conta um eventual adiamento para o encerramento da actual.

Alterações ao calendário competitivo que a Liga pretende que tenham reflexos nos prazos estipulados legalmente para o termo e início dos contratos de trabalho dos jogadores, de forma a não poderem ser invocadas por estes para uma rescisão contratual por justa causa.

Acesso ao layoff

A Liga sensibiliza ainda o Governo para a “possibilidade de aplicação pelos clubes e sociedades desportivas dos mecanismos de resposta à redução de actividade das empresas previstos na lei”. Ou seja, garantir o recurso ao layoff simplificado ­– mecanismo de apoio extraordinário para mitigar os efeitos da crise financeira provocada pela pandemia – para futebolistas profissionais.

O documento foi posteriormente remetido pelo secretário de Estado da Juventude e Desporto à FPF e ao Sindicato dos Jogadores, solicitando pareceres. Em resposta, Fernando Gomes sublinhou que as questões levantadas pela Liga “não são exclusivas” das competições profissionais, mas “transversais a todo o quadro competitivo da FPF”, merecendo, por isso, que a discussão tivesse lugar no grupo de acompanhamento criado para o efeito.

“Temos consciência de que se vivem tempos difíceis e, por esse motivo, a direcção da FPF não deixará de tomar as decisões que lhe competem, desde logo, no que ao termo da época em curso e início da próxima diz respeito, janelas de inscrição de jogadores e publicação do calendário oficial de provas para a época 2021-22, competência que a Lei lhe comete”, reforça Fernando Gomes.

Liga justifica

Salientando que a carta enviada ao Executivo foi elaborada pelo gabinete de trabalho jurídico da Liga, com a contribuição das 18 Sociedades Anónimas Desportivas (SAD), o organismo não deixa de lamentar o sucedido [falta de comunicação com a FPF], apesar de justificar que estavam em causa “interesses específicos” do futebol profissional.

“Houve aqui uma falha de comunicação, fruto do isolamento [imposto pelo estado de emergência], e o documento não foi partilhado com a FPF”, explicou esta segunda-feira ao PÚBLICO a directora executiva da Liga, Sónia Carneiro. Mesmo assim, a responsável garantiu que Fernando Gomes foi avisado que este ofício estava a ser preparado.

Sindicato critica

Surpreendido com a carta de Pedro Proença ficou ainda o Sindicato dos Jogadores, que criara com a Liga um grupo de trabalho na sequência da crise pandémica.

“Estas propostas não foram consensualizadas nem no grupo de trabalho para a monitorização do impacto de covid-19 no futebol português, criado pela FPF, nem no grupo de trabalho para a discussão das propostas potencialmente conciliáveis em sede de negociação colectiva de trabalho, que [a Liga] mantém com o Sindicato dos Jogadores”, lamentou Joaquim Evangelista, presidente do organismo.

“Trata-se, portanto, de uma posição unilateral da Liga que, desde já, contestamos”, prosseguiu, antes de criticar o teor do documento. “As propostas da Liga violam garantias legais, por um lado, e constituem um abuso de direito, por outro, agravadas por não merecerem o consentimento dos visados (jogadores profissionais de futebol).”

Uma resposta que a Liga contesta. “Tudo o que ali está são exactamente os mesmos termos que nós quisemos levar a concertação colectiva com o sindicato. O sindicato não foi surpreendido por este documento. Todos estes temas que levantámos ao Governo, levantámos também ao sindicato”, salientou Sónia Carneiro.

Nacional contra-corrente

Num outro campo, o Nacional resolveu esta segunda-feira promover o regresso aos treinos do seu plantel contra as indicações da Liga. Uma decisão da SAD do clube madeirense que vai em sentido contrário àquela que tem sido adoptada por muitos outros adversários dos escalões profissionais, que deram férias aos seus jogadores. São 13 os clubes actualmente nestas circunstâncias, dez na I Liga e três da II Liga.

“O Nacional comunicou-nos esta intenção na última quinta-feira, no âmbito de uma reunião de clubes. Foi veementemente aconselhado a não o fazer, face ao que era a posição quer da Direcção-Geral de Saúde (DGS) quer aquilo que estava a ser o procedimento da Liga”, revelou Sónia Carneiro, salvaguardando que não está a ser cometida nenhuma ilegalidade.

“A lei [do estado de emergência] permite que os atletas profissionais possam treinar, apesar de termos resolvido esperar por indicações claras da DGS sobre esta matéria”, prosseguiu a responsável da Liga. “Dissemos que éramos contra, mas não está no âmbito das nossas competências proibir os treinos.”

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