“Certificado de imunidade”?: um pesadelo

Vejo nestes “certificados de imunidade” uma perigosa sugestão, no quadro desta calamidade pública, que representa uma óbvia incursão na chamada “biopolítica”. E de modo violento.

T'es un danger pour qui t'approche.
On va te coudre sur la poche
Ton étoile d'or..."
(Herbert Pagani, L’Étoile d’Or)

É mais habitual eu escrever sobre cultura e património. Mas, desta vez, vejo-me perante um assunto que suscita uma posição. Melhor: uma oposição. Porque é um assunto que não deixa de ser de caracter cultural e de perspetivação histórica (ou falta dela), e que possui contornos ideológicos que são, na minha opinião, perigosos: trata-se da ideia, que ainda não foi concretizada – e espero que nunca o venha a ser – da emissão de “certificados de imunidade”.

Creio, mas não estou absolutamente certo, que essa ideia nasceu na Alemanha. O “certificado de imunidade” seria concedido a todos aqueles que estivessem imunes ao vírus SARS-CoV-2​, vulgo covid-19, de modo a poderem retomar o trabalho em condições normais sem risco de contágio.

Começando pelo facto de não sabermos o que será ou não será o trabalho normal quando a crise covid-19 se dissipar, a intenção é o regresso de circunstâncias produtivas para iniciar a recuperação económica que a calamidade virá a exigir.

Ora, vale dizer, mesmo não sendo eu especialista, que estamos ainda longe de conhecer a covid-19, e que só uma vacina poderá resolver a nossa fragilidade perante o infame vírus atacante.

Quanto à imunidade, conseguida ou não pelos que foram infetados e que conseguiram recuperar, pode dizer-se que não existe, comprovadamente por enquanto, ciência que garanta a produção de testes de “imunidade” fiáveis, e que a existir, exigiriam, mesmo assim, verificações constantes através de testes e mais testes, espaçados e planificados.

Pior do que tudo: vejo nestes “certificados de imunidade” uma perigosa sugestão, no quadro desta calamidade pública, que representa uma óbvia incursão na chamada “biopolítica”! E de modo violento. Passariam, imediatamente, a existir cidadãos de primeira e cidadãos (?) de segunda, os “bons” e os “maus”, mesmo que involuntariamente “maus” como é óbvio, e “maus” apenas por possuírem uma diferença biológica invisível.

A fala de perspetivação histórica permite-me afirmar que tal ideia decorre de um posicionamento de distinção social e cultural, que resulta de um biopoder (como o definiu Michel Foucault). A isto acresce o caracter espectral da ideia, fazendo de uns os fantasmas dos outros sempre em função do uso político (do abuso político) da biotecnologia.

O “certificado de imunidade” configura-se assim como uma “heterotopia”, ou seja, uma projeção e representação no espaço e no corpo – no nosso corpo  de uma diferença, de um desvio em pleno momento de crise. O que isto representa nas sociedades modernas já está presente entre os refugiados e os respetivos campos de “boat people”, que se assemelham, ou são mesmo, campos de concentração. Sem aspas. E por aqui percebe-se onde quero chegar.

Se se vier a institucionalizar o “certificado de imunidade”, muitos de nós, ou todos nós, passaremos a ser apenas objetos “sem lugar”, corpos “sem significado” que não seja o da sua autorrepresentação pelo “certificado” ou falta dele.

Se ponho as coisas desta maneira, é porque não posso deixar de lembrar o rasto desastroso dos totalitarismos, e de alguns deles em especial no que respeita às atitudes racistas e xenófobas. Estou a exagerar? Não, não estou. Conhecemos bem essa distopia utópica que foi o terror do nazismo, que se baseou na distinção, na separação, na concentração (e por fim no extermínio).

Embora por meios mais sofisticados, alguns deles já postos em prática na China através das modernas tecnologias de deteção, comunicação e policiamento, a sociedade tenderia para a fratura e seria criada uma espécie de xenofobia “interna” do domínio do “paranoico”.

A mim, vem-me à mente a imagem de pessoas, de gente (reparem que não usei a palavra cidadãos) vestidos com um sinal bordado no fato. À esquerda, no lado do coração: um círculo rosa com espéculos – a imagem/tipo, a nossa maneira de fantasmar o vírus. Serão esses os não-imunes, os potenciais transmissores, aqueles de quem nos temos de afastar…. ou que teríamos de afastar, amplificando os efeitos do distanciamento social até ao insuportável.

Que a ideia possa ter vindo da Alemanha, sem com isto menosprezar a soberba cultura alemã e os nossos confrades alemães e europeus, será ainda mais estranho.

Por favor: pensem um bocadinho.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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