Prioridade à covid-19 põe em risco doentes não urgentes

Com o cancelamento ou adiamento de tratamentos considerados não urgentes, há milhares de pessoas que ficaram sem as terapias que as ajudavam a gerir o dia a dia. Não há, por enquanto, alternativa, reconhecem, mas ninguém duvida que esta travagem a fundo vai ter consequências

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Beatriz Ferreira, 68 anos, foi operada à coluna e a fisioterapia que estava a fazer foi interrompida. “Disseram-me que quando as coisas normalizassem me telefonavam. Que ia ser um bocadinho prejudicial, mas que não havia nada a fazer." Daniel Rocha

A fisioterapia de Beatriz foi interrompida e ela tem receio que os resultados conseguidos com a cirurgia à coluna, em Novembro, regridam. Todas as terapias da Mariana, que tem autismo, pararam, e a mãe teme que seja preciso voltar ao início, no trabalho de desenvolvimento de algumas competências que a criança acabara de adquirir. Cristina parou com os tratamentos complementares que a ajudavam a lidar com a síndrome da dor regional complexa (SDRC), que a debilita há anos, e já sente os efeitos na mobilidade. O adiamento dos tratamentos não urgentes, por causa da covid-19, mesmo em casos de situações crónicas, não deverá deixar os doentes incólumes. Em muitos casos, a avaliação só será feita depois do regresso à normalidade. 

Aos 63 anos, Fátima Nunes está mais do que habituada às terapias que a ajudam a combater a asma crónica de que sofre. Há vinte anos que as faz, numa unidade de saúde de Vila do Conde, para onde se desloca três vezes por semana. “Sem férias nem nada, quando umas terapeutas vão de férias, ficam outras a substitui-las”, diz, ao telefone. A situação mudou há poucas semanas, com a chegada da covid-19 a Portugal e a decisão de se adiarem ou cancelarem praticamente todos os procedimentos considerados não urgentes. Há semanas que Fátima Nunes deixou de sair de casa para realizar as “nebulizações, massagens e outros tratamentos” e agora tenta desenvencilhar-se sozinha. Faz os exercícios que lhe recomendaram, tem sempre por perto o nebulizador e uma medicação para usar em caso de emergência. À noite dorme com a máquina indicada para a apneia do sono.

Por enquanto, garante, não sente diferença na sua condição, nem está muito preocupada. “Ainda no dia 26 de Março me telefonou a médica a perguntar como eu estava. Eu disse que estava bem e ela disse para continuar a fazer tudo na mesma e que nos víamos em Junho.”

Apesar de neste caso a situação estar controlada, é preciso estar atento e tomar alguns cuidados para evitar eventuais agravamentos do estado de saúde, alerta António Carvalheira Santos, presidente do Observatório Nacional das Doenças Respiratórias, para quem há quatro regras de ouro a cumprir. “Antes de tudo estes doentes têm de cumprir o afastamento, a contenção é muito importante e eu sou muito a favor do uso de máscara. Segundo, é essencial continuarem a fazer a medicação habitual para que a sua doença crónica não desestabilize. Depois é preciso contactar de imediato a médica assistente se houver alguma alteração no seu estado e, por último, se tiver febre ou algum sintoma respiratório mais grave, deve ligar para a linha SNS24”, diz o médico.

Nenhum dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO recusou que o adiamento de terapêuticas terá consequências e que haverá muito a fazer quando for possível regressar à normalidade. No caso das doenças respiratórias, Carvalheira Santos estima que será necessário, no mínimo, na altura do regresso à reabilitação, “avaliar e fazer um novo programa de tratamento”.

"Nada a fazer"

Beatriz Ferreira, 68 anos, não sofre de uma doença crónica, mas em Novembro foi operada à coluna e a fisioterapia que fazia três vezes por semana, num hospital da Parede, em Cascais, e que o médico lhe tinha dito que deveria prolongar-se, pelo menos, “por seis meses”, foi interrompida a 13 de Março. “Disseram-me que quando as coisas normalizassem me telefonavam. Que ia ser um bocadinho prejudicial, mas que não havia nada a fazer.”

A morar num 1.º andar de um prédio de Lisboa admite o receio de enfrentar a escada, “bastante inclinada e alta”, quando esse dia chegar. “Antes da operação eu já quase não andava e tenho receio de ficar como estava. Com a operação e a fisioterapia já tinha deixado o andarilho que usava antes e estava com um bocadinho mais de força no joelho. Até já conseguia subir a escada só com a ajuda de uma pessoa”, alegra-se. Agora, é esperar e gerir os receios. Continua a tentar fazer os exercícios recomendados, mas em casa não tem “as barras, nem as passadeiras” que existem na unidade de saúde, pelo que nem tudo é possível. “Há certas coisas que fazia lá e que agora não faço”, diz.

Para Cristina Silva, 44 anos, há muito que a impossibilidade de fazer determinadas coisas se instalou na sua vida. Infectada com uma bactéria hospitalar, durante uma cirurgia a uma hérnia discal num hospital do Porto, em 2017, nunca mais pôde movimentar-se com a normalidade que tinha antes. A infecção causada pela bactéria foi de tal ordem que obrigou a uma nova cirurgia e o procedimento foi tão invasivo que lhe lesionou os nervos. Depois de uma terceira cirurgia, para lhe dar mais estabilidade à coluna, sabe hoje que as dores persistentes, que parecem não desaparecer com nada e lhe limitam muito a mobilidade, provêm da síndrome da dor regional complexa. Toma opióides, analgésicos e anti-depressivos, que não resolvem o problema, e o tratamento foi sempre complementado com outras terapias. No hospital fazia hidroterapia, pressoterapia e drenagem linfática. A título particular, electro-acupunctura e Pilates clínico. 

As terapias no hospital tinham já sido interrompidas algumas semanas antes da chegada da covid-19 a Portugal, porque Cristina Silva estava em avaliação para uma outra tentativa de tratamento: uma nova cirurgia para colocar um neuro-estimulador medular. “Tinha uma ressonância magnética marcada para 17 de Março e consulta no dia 24 e isso dava-me a sensação que a solução estaria ali a um passo. Mentalizei-me que tinha de aguardar até essa data porque nessa altura seria tomada uma decisão. Agora não sei quando é que vai ser”, diz.

Quando a covid-19 invadiu o país, Cristina Silva estava de novo em espera para retomar a hidroterapia no hospital e continuava a fazer os tratamentos particulares. Agora, há semanas que o único apoio que tem são as consultas pelo telefone da unidade da dor onde é seguida — e que inclui contactos com anestesistas, psicólogos e psiquiatras —, o que lhe permite ajustar a medicação. Mas isso não chega. “Tenho sentido um agravamento das dores e também um retrocesso na minha mobilidade. A medicação sempre foi insuficiente e os tratamentos que fazia ajudavam bastante a tornar a dor mais suportável. O que sinto é que tenho de fazer o reforço da medicação, mas mesmo assim as crises [de dor aguda] estão a tornar-se menos espaçadas”, conta. Nessas alturas, tem de ficar na cama.

Prejudicados

A anestesista Teresa Vaz Patto, da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor, não tem dúvidas de que para estes doentes, a paragem nas terapias vai ter consequências. “Evidentemente que com esta paragem está prejudicada a parte da reabilitação. E no momento da descompressão vai ser mais complicado. Nesta altura estamos numa fase muito aguda, de preocupação com a própria vida, e quando isto terminar, e vai terminar, vai ser pior. A dor volta a ser um problema de grande intensidade, as pessoas vão descompensar e é preciso estar com grande atenção.”

Por enquanto, admite, pouco se pode fazer. “Esses tratamentos não são possíveis neste momento, o que aconselhamos é que os doentes tentem, com o apoio da psicologia, fazer algum tratamento em casa, para não ficarem muito limitados. Há alguns exercícios que se podem fazer”.

Há, admite Cristina Silva, o problema é que sem o apoio especializado e a dor constante, vem o receio de fazer alguma coisa errada, que agrave ainda mais o problema. “As indicações são para me mexer, mas estou sem o apoio dos técnicos e tenho algum receio. Tenho feito alguns alongamentos, com limitações, porque tenho medo de me magoar.”

Diz que não quer usar o termo “desamparada”, porque compreende que o serviço de saúde está a fazer o que pode, com as condições actuais, mas o sentimento é inevitável. Ainda assim, não baixa os braços. “Há-de haver pessoas piores, sozinhas entre quatro paredes, a lidar sozinhas com a dor. Se ela não for controlada não se consegue ter estabilidade mental, ficas deprimida, sem forças, esgotado. Quando isto acontece, se há uma estrutura atrás de ti, sentes alguma tranquilidade.”

Na casa de Raquel Rocha, 46 anos, toda a estrutura de apoio à filha Mariana, uma menina com autismo de 13 anos, desapareceu de um dia para o outro. O encerramento da escola, onde a criança frequenta o centro de apoio à aprendizagem, deixou-a sem terapia da fala, hipoterapia e a natação adaptada. O alastrar da pandemia, o encerramento de serviços e o receio de contágio, acabaram também com as visitas da psicóloga e as sessões de neurofeedback, que Raquel Rocha descreve como “um treino neurológico, quase fisioterapia a nível cerebral”. “De um momento para o outro desapareceu tudo e eu passei a ter a Mariana à janela, tipo Madalena arrependida, à espera que alguém entre no portão”, brinca.

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Mariana e a mãe dr

Foi difícil explicar à filha, que não fala (é “não verbal”, como descreve a mãe) o que estava a acontecer. Ela “não reagiu mal”, até porque os tratamentos têm-na ajudado a ter mais auto-controlo. Mas há mudanças que a mãe já sente. “Noto que fica muito mais apática e aborrecida. A parte da interacção social também não é a mesma. Brinca com a irmã, de oito anos, quando lhe interessa a ela, mais nada.”

Regressão visível

O regresso à normalidade é que vai permitir perceber exactamente até que ponto é que a permanência em casa, sem as terapias a que estava habituada, terão tido um efeito em Mariana. A mãe já percebeu algumas das dificuldades que deverão surgir. “Estávamos a começar a estimular mais a parte da linguagem e quase de certeza que vai ter de voltar ao início. Ela está a começar a verbalizar algumas coisas, com alguns sons, e tenho receio que isso se iniba um bocadinho, porque não está a ter o estímulo necessário. Também estava a trabalhar mais a parte da motricidade e da escrita e comigo ela resiste muito, porque não vê na mãe o papel do professor e só com muito custo consigo pô-la a fazer algum exercício. Nisso sei que vai estagnar muito, por muito que eu esteja a tentar.”

Regressão e dificuldade em atender o que está a acontecer é algo que Maria do Rosário Zincke dos Reis, da Associação Alzheimer Portugal, sabe que está a acontecer também entre estes doentes. “O mais importante para eles é o envolvimento social, a estimulação cognitiva, cumprirem sempre as mesmas rotinas”, diz. Para os cerca de 160 utentes que a associação acompanha nada disso está a acontecer. “Os nossos quatro centros de dia estão fechados e as pessoas estão todas em casa.”

Telefonemas diários, apoio domiciliário quando é possível e até algumas sessões pela Internet são as estratégias para tentar combater o trabalho diário que não está a ser feito. Mas não chega. “Apesar deste esforço há aspectos muito negativos que já se estão a fazer sentir ao nível da mobilidade. As pessoas estão mais paradas, não têm fisioterapia, não fazem exercício físico. Em muitos aspectos, quando isto terminar, vai ser uma reaprendizagem e vamos ver o que conseguimos recuperar. Estamos todos numa grande incerteza”, diz.

Também a Associação Portuguesa de Doentes com Parkinson alertou há dias para o facto de alguns doentes poderem “regredir” pela paragem das terapias que oferecia. Para tentar colmatar essa interrupção, colocou online um manual com exercícios de fisioterapia, terapia de fala e conselhos aos cuidadores, com dicas sobre postura, alimentação ou hidratação. O objectivo, lê-se no comunicado, é que “o estado destes doentes não se deteriore durante o confinamento imposto pela pandemia.”

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