Era melhor que houvesse corpo e protesto para defender as artes plásticas e visuais

Se as obras de Arte deixarem de circular, agora, se deixarmos de incentivar e de dar esperança aos artistas plásticos e visuais, os livros de História do futuro vão falar de uma pandemia abstracta, sem Arte que a conte e que a reflicta, sem nada. Apenas o vazio dos dias que nos parece ocupar demasiado espaço.

Inquietos estamos entre dois tempos: o tempo da observação e o tempo da acção. A meio do caminho vamos analisando. Ninguém esperava e, provavelmente, muitos ainda não acreditam que por estes dias se escreve a História e que esta pandemia será capítulo dos livros, dos arquivos do futuro. Os equipamentos culturais foram dos primeiros a encerrar, a serem considerados não essenciais. Todos os dias ouvimos novas de eventos, de cultura ou entretenimento, sobretudo os de massas e para espaço público, que, este ano, não terão lugar. É previsível que no Verão haja uma volta progressiva à normalidade. Uma volta lenta em que os não essenciais serão convidados a permanecerem fechados, a adiar projectos e programação em espaço físico. Mas dizer que a cultura parou é diferente de constatar que os equipamentos culturais encerraram, todos, em bloco, à possibilidade de fruição presencial dos seus públicos.

Aos poucos foram chegando os apoios do Estado ao sector. Aos poucos. Já depois de centenas de contratos cancelados, determina-se que cancelar não é possível e que é preciso pagar. Algumas autarquias ousaram até gabar-se que as poupanças com as actividades culturais e recreativas estavam a ser usadas no combate à pandemia. Bravo! Todos na linha da frente e nada contra. É uma questão de saúde pública e estamos todos de acordo que a prioridade é travar o contágio. Como também devia ser prioridade travar a propagação da iliteracia, da ignorância, do medo, da precariedade e da fome. Foi tudo tão difuso e escasso que só revelou a falta endémica de uma política cultural do Estado.

A Direcção-Geral das Artes lançou uma linha de apoio de 1 milhão de euros, com uma série de condições; a Fundação Calouste Gulbenkian abriu e fechou um programa em tempo recorde para ajudar; depois há o Portugal #EntreEmCena: uma página web com um conjunto de logótipos de empresas privadas que se propõem apoiar projectos que se coadunem com interesses das empresas. Não é claro, é confuso e funciona tudo por concursos e por critérios restritos. Ainda os apoios aos trabalhadores independentes que eventualmente poderiam abranger muitos trabalhadores do sector, os visíveis e os invisíveis, mas que é pouco mais que uma miséria que não paga uma renda aos preços actuais em Lisboa, Porto ou mesmo Braga.

Depois houve a efeméride do TV Fest que uma acção colectiva do meio cultural e artístico fez suspender. Muitos não entenderam o porquê da indignação popular. Não há muito a explicar: não são precisas acções de entretenimento e muito menos acções que distribuam o dinheiro por uma escassa meia dúzia. Não. É preciso uma estratégia concertada que combata, definitivamente, a precariedade do sector, colocando a acção cultural e a criação artística como essenciais num Estado de direito. É também urgente que se trabalhe já em planos de contingência para uma adaptação dos equipamentos e dos eventos a esta nova realidade porque não queremos nem vamos ficar confinados para sempre e nada poderá ser como dantes.

Tudo isto, ainda que escasso mas existente, está sobretudo ao alcance de uma parte dos profissionais, visíveis e invisíveis, das designadas artes do palco (música, teatro, dança, etc.). Há, portanto, um enorme hiato. O que dizemos nós aos artistas plásticos e visuais que vivem, exclusivamente, da comercialização do seu trabalho, que dependem da acção das galerias e da visibilidade dada pelos museus e pelos centros de exposições? O que lhes dizemos nós em tempos de pandemia? Não têm evidências de contratos cancelados porque não há contratos-promessa compra e venda para as obras de arte. Como os apoiamos? Estes, como outros, não pararam de trabalhar e é quase exagerado a quantidade deles que enche as redes sociais com directos e tutoriais de tudo e mais alguma coisa.

A realidade é que o Estado e algumas instituições têm programas de bolsas de investigação e criação artística incipientes, reduzidas e redundantes que nos parecem chegar sempre aos mesmos. As políticas de aquisição das instituições públicas e privadas alimentam um pequeno núcleo e são insuficientes para a criação e os criadores existentes. De repente, de portas fechadas, parece que as galerias ficaram amorfas ou então estão apenas concentradas na sua própria sobrevivência e em fazer chegar aos clientes obras de espólio, em que já não há direito às comissões a receber pelos artistas. O online é menosprezado e em vez de aproveitarmos esta oportunidade para nos renovarmos e procurarmos fazer com que o mercado não pare, cada um tenta salvar a sua pele.

Lembramo-nos de tudo o que nos apetece fazer e viajar lidera as nossas melhores memórias. Não nos damos conta que os museus, os espaços de exposições e as praças de que tanto nos recordamos estão cheias da Arte em que alguém investiu, contribuindo para construir futuro, guardando memória do presente. Se as obras de Arte deixarem de circular, agora, se deixarmos de incentivar e de dar esperança aos artistas plásticos e visuais, os livros de História do futuro vão falar de uma pandemia abstracta, sem Arte que a conte e que a reflicta, sem nada. Apenas o vazio dos dias que nos parece ocupar demasiado espaço. Tudo isto (o que foi feito para combater as consequências da pandemia no sector cultural e artístico e o que não foi feito) revela uma inércia cognitiva e um desconhecimento do global: em geografia e em expressões artísticas. De repente, a cultura que dizem ter parado está resumida a meia dúzia de eventos que afinal não faziam assim tanta falta.

O país sentiu a solidariedade dos seus artistas. Sentiu. Multiplicaram-se as iniciativas de disponibilização de conteúdos através do online. Mas os artistas, nomeadamente os plásticos e visuais, sentiram que mais do que não essenciais são não existentes e não mereceram, até ao momento, nenhum tipo de referência. Estará cada um por si? Talvez.

Mas era melhor que houvesse corpo de protesto para que os equipamentos fossem todos obrigados a rever as suas condições de segurança e higiene para poderem funcionar, ainda que com menos gente, tão brevemente quanto possível. Era melhor que houvesse corpo e protesto para se reclamar um programa extenso de bolsas de criação para os artistas plásticos e visuais que em troca enchiam e completavam as colecções públicas e privadas de obras de Arte. Era melhor que houvesse corpo e protesto para que, no futuro, os museus e as salas de exposições contassem esta História através das obras de Arte e não apenas da memória do lixo televisivo que tanto se produz por aí. Era melhor.

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