As festas de coronavírus são uma má ideia

Não é apenas entre os mais jovens que a ideia de despachar já a covid-19 para ficar imune tem aflorado nas conversas, diz uma epidemiologista canadiana. Uma ideia “absurda”, nas palavras presidente do Conselho Nacional de Ética.

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Ilustração do coonavírus SARS-CoV-2 ATS

Parece uma piada mas não é: há quem pense em organizar “festas de coronavírus” em que pessoas saudáveis se misturam com pessoas infectadas para apanhar o vírus da covid-19. O objectivo seria ganhar um certificado de imunidade, permitindo uma saída mais cedo do isolamento social imposto por vários governos em todo o mundo.

“Não sabemos quão comuns são estes comportamentos, mas a discussão está a ter lugar entre jovens que ouviram a mensagem de que correm um risco menor do que as pessoas mais velhas”, diz a epidemiologista Greta Bauer, que assinou na semana passada um artigo de opinião no jornal New York Times a alertar para os riscos da infecção deliberada, em declarações ao PÚBLICO. Uns dias antes, o mesmo jornal noticiara que o Twitter tinha bloqueado um site conservador que promovia um programa de “infecção voluntária” e que um jovem ficara infectado no Kentucky depois de ter estado presente numa “festa coronavírus”. 

“Infelizmente, muita gente não sabe o que não sabe. Retiveram a informação sobre as mortes, mas não conseguem raciocinar sobre possibilidades como imunidade a curto prazo, reservatórios virais [em que o vírus fica latente e pode ressurgir] ou sequelas nos órgãos. Além disso, somos mesmo maus a perceber o risco e percentagens de 1% e 3% até as multiplicarmos”, continua esta professora na Universidade do Ontário Ocidental, no Canadá. Mas não são só as pessoas jovens a considerar a infecção intencional: “Há quem queira ganhar imunidade para conseguir cuidar melhor de outras pessoas e servir a comunidade. Ou quem quem deseje regressar ao seu trabalho ou a outras actividades importantes.”

Em Portugal, o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, não se deparou com esta discussão sobre a infecção deliberada, mesmo quando mais recentemente se discutiu a realização dos primeiros testes de imunidade à população portuguesa marcados para o final do mês, o que tem sido associado em alguns países à criação de certificados de imunidade para criar estratégias para aligeirar as medidas de confinamento social.

Com a Espanha a ensaiar um regresso parcial ao trabalho esta semana, o perigo dos certificados poderem dar a origem a infecções voluntárias foi denunciado pela Sociedade Espanhola de Medicina Preventiva, Saúde Pública e Higiene no fim-de-semana. “Confesso que não ouvi falar de pessoas que se infectem deliberadamente”, afirma Ricardo Mexia, lembrando que não é nada linear que a estratégia faça sentido, porque é muito difícil manter estanque uma exposição deste género. “Haverá sempre pessoas que não sendo directamente envolvidas nesses potenciais contactos voluntários acabam por ser vítimas da doença.”

Greta Bauer explica por que razão as “festas de coronavírus” — uma estratégia inspirada na era pré-vacina para doenças como a rubéola ou a varicela — são, de facto, uma ideia “horrível” com os sistemas de saúde tão sobrecarregados. “Qualquer pessoa que se infecte intencionalmente e obrigue a uma hospitalização está a tirar uma cama de hospital a alguém que não conseguiu evitar a infecção”, sublinha a epidemiologista canadiana.

Depois, ainda não há a certeza de que é possível obter uma imunidade de grupo natural, porque isso depende de uma resposta imunitária sustentada a longo prazo capaz de evitar a reinfecção. “Se a imunidade tiver uma duração muito curta, uma pessoa que tenha sido infectada — intencionalmente ou não — pode ficar susceptível a ser novamente infectada logo depois da recuperação.” A epidemiologista canadiana espera que a covid-19 não tenha uma imunidade tão curta e que os casos de aparente reinfecção que têm sido relatados se devam a outras causas como erros com testes.

O problema dos casos graves

Com a imunidade a durar um pouco mais, talvez cerca de um ano, a covid-19 pode tornar-se uma doença sazonal como acontece com a constipação comum causada por outros membros da família dos coronavírus. “No entanto, enquanto as constipações causam uma doença moderada e não ficamos normalmente preocupados quando somos novamente infectados, esta é uma doença muito mais grave com potenciais sequelas a longo prazo para a saúde e com risco de morte. Se a imunidade durar mais naqueles que desenvolveram casos graves, então poderemos ver uma doença sazonal com uma menor proporção de casos graves ao longo do tempo”, lembra Greta Bauer, acumulando argumentos contra ter uma infecção nesta fase inicial da pandemia.

Outra razão para procurar achatar a curva de crescimento da pandemia, a estratégia comum à maioria dos países, é tentar evitar que os casos graves se alarguem até se conseguir melhorar a forma de os tratar, evitando mais mortes: “Estão a ser conduzidos e planeados testes clínicos. Nos próximos meses, teremos provavelmente medicação eficaz para reduzir os riscos dos resultados mais graves como a morte ou as sequelas nos órgãos. É mais provável que aqueles que forem infectados mais tarde recebam tratamentos mais eficazes, reduzindo os resultados negativos e o stress do sistema de saúde.”  

Sem vacina e sem uma imunidade de grupo natural de longo prazo garantida, os governos têm também de fazer algumas experiências para ver como a pandemia evolui e correr, de certa forma, também alguns riscos, reconhece Greta Bauer: “As estratégias sociais para aliviar e apertar o distanciamento social são como abrir devagar uma válvula de escape para controlar a taxa a que as pessoas ficam infectadas e desenvolvem imunidade. O que é importante é fazê-lo a um ritmo que quem ficar doente possa ter acesso a oxigénio, ventiladores e a qualquer medicamento eficaz que seja identificado num futuro próximo.”

Para Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), órgão que divulgou no início do mês um parecer sobre a covid-19, é simplesmente “estúpido” tentar ganhar imunidade através da infecção deliberada. “Isso não é um problema ético, é um problema de bom senso. Andamos aqui a fazer o discurso de que as pessoas devem estar confinadas e manter a distância social, por isso qualquer movimento em sentido contrário é totalmente absurdo”, afirma. “A minha autonomia de me querer juntar com pessoas para ganhar imunidade encontra-se limitada pelo facto de eu ir prejudicar terceiros. As primeiras preocupações são sempre a vida humana, porque esse é um bem maior. Foi assim também aqui em Portugal. Numa segunda fase, é preciso ter em atenção as preocupações com a economia porque o prejuízo pode ser de tal monta que agrave o problema da vida humana com factores que a fragilizem como a fome.”

Mesmo a longo prazo, Jorge Soares considera situações como esta que procuram adquirir imunidade através do contágio voluntário “muito arriscadas”. Inglaterra, com muito experiência em saúde pública e na prestação de cuidados de saúde, inverteu a estratégia inicial de não encerrar escolas ou pubs e decretou também o isolamento social. “Começou por dizer que ia dar uma protecção especial aos mais vulneráveis e que o resto ia conhecer uma infecção muito moderada, ligeira, ou nem ia sentir nada. Tiveram de corrigir essa trajectória porque a consequência é uma sobrecarga dos serviços de saúde que praticamente paralisa o sistema.”

Uma imunidade alargada vai demorar a ser alcançada, concorda o presidente do CNECV. “Estamos numa situação difícil de não termos imunidade promovida através de uma vacina, que só virá na melhor das expectativas no fim do ano, e de termos como imunes só as pessoas que tiveram doença ou as assintomáticas que desconhecem que tiveram a doença. Pensamos que essas pessoas são uma porção relativamente pequena da população geral. A primeira grande dificuldade é mobilizar as pessoas para assumirem atitudes que são difíceis do ponto de vista pessoal, porque toda a vida das pessoas foi conduzida para o exercício de uma liberdade individual que hoje é muito dominante.”

Uma das maiores dificuldades na gestão da pandemia é a maior parte da população estar a ter com a covid-19 a primeira experiência com uma infecção emergente que ameaça a sua comunidade, afirma Greta Bauer, o que é um desafio não só cognitivo mas também emocional. “As gerações mais antigas estavam habituadas a ter de pensar sobre o risco de surtos de uma infecção respiratória e a fazer quarentenas. Estivemos livres dessa ansiedade nesta era pós-vacina.”

Mas se é difícil ser paciente nesta primeira fase em que ainda não conhecemos o agente patogénico, apesar da velocidade a que a ciência do SARS CoV-2 se tem desenvolvido, “é importante percebermos que, ao contrário das gerações mais antigas, vamos encontrar uma solução rapidamente, devido às tecnologias disponíveis.”

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